Álvaro André Zeini Cruz
Gosto de saber quando estou indo embora, e gosto de saber quando vou ficar. Meu psicólogo diz que deve ser trauma das perambulações da juventude. Sujeito bacana ele; se bem que não deve ser difícil ser bacana a 200 dólares a hora. Foi ele quem disse à minha irmã que uma visita a meu irmão roteirista trar-me-ia efeitos benéficos. Disse desse jeito mesmo, com mesóclise e tudo. Meu irmão usava mesóclise quando fazia literatura, mas nesse negócio em que ele se meteu não dá mais. Acho bem fajuto isso de escrever roteiro.
Pelo menos serviu para ele conhecer a esposa, que é xará da nossa irmã. Quando ele me contou que estava namorando uma atriz inglesa que era xará da minha irmã eu pensei que ele estava saindo com a Phoebe Waller-Bridge. Eu adoro “Fleabag”, principalmente aquele lance que ela faz de olhar para a câmera. Eu gosto de séries bem mais do que de cinema. Na verdade, eu nunca entendi muito bem esse lance de fila de cinema, pipoca de cinema, tela de cinema, mofo de cinema. Mas meu irmão resolver dar descarga no talento dele e é claro que a Phoebe Waller-Bridge sequer olharia para um sujeitinho que faz isso.
Mas eu vim, fiquei lá uns dias vendo o céu nublado de Edimburgo, me perguntando quem troca Londres por Edimburgo. É tanta chuva que pode ser que ele nem tenha notado. A Phoebe do meu irmão é bacana, bem menos mixuruca do que eu imaginava. Claro que pode ser que eu tenha me enganado, porque ela sabe um bocado de coisa de teatro e tal e isso é que nem fumaça nos olhos das outras pessoas. Ela é atriz de soap opera e disse que as daqui são melhores que as americanas. Deve ser porque metade das cenas dela são num pub; certeza que deve entortar uns pints em cena, enquanto eu e meu irmão assistimos aquela porcaria tomando chá com leite em conjuntos de porcelana de gosto questionável. Pensando bem, não sei o que o cretino do nosso amigo psicólogo estava pensando…
Meu pai – que o diabo o carregue! – dizia que visita é como carneiro; depois de três dias ganha cheiro. Eu fiquei quinze dias na casa do meu irmão, então imagina só! Já não era sem tempo eu me mandar. Até porque foi bem constrangedor ver a bunda da minha cunhada de relance pela toalha de banho, mesmo que eu estivesse a uma distância brechtiana. Aliás, esse foi o primeiro lampejo de idiotice que tive dela – quem, por Deus, deixa a fenda da toalha posicionada na bunda? Aquela da nossa amiga Phoebe me matou.
Então, eu estava indo embora, mas a Phoebe-que-não-era-Waller-Bridge disse que eu precisava parar numa cidadezinha chamada York de todo jeito. Eu odeio quando as pessoas dizem que eu preciso fazer alguma coisa e estava disposto a não fazer isso, mas aí vi no Google que tinha uma tal muralha em volta da cidade e dei o braço a torcer. Eu tenho uma queda por esse lance de muralhas, por essa ideia de amontoar pedras para delimitar as coisas. Porque quando a gente separa, a gente organiza. Lembro que naquela droga de colégio interno a aula que eu mais gostava era a de geografia, principalmente quando a aula era sobre África. Achava bonito pacas aquele lance das fronteiras milimetricamente geométricas que pareciam traçadas no esquadro. Desci bem cedo em York.
A estação tinha um teto de vidro que acompanhava os trilhos do trem e uns brasões metidos entre as colunas de ferro. Estava um frio da porra e, sabe como é o sol; só aparece quando cisma e naquele dia ele não tava cismado. A verdade é que aquele cinza todo já estava me deixando meio deprimido. Aí, andando, eu vi um desses walk tours e resolvi seguir aquele pessoalzinho meia-boca, que não estava nem aí para o que a guia falava dos romanos, do comércio da lã, do Guy Fawkes. Eu também não estava, porque já tinha lido tudo na Wikipédia. Eu queria era chegar logo no nosso amigo muro. E, com um pouco de paciência (que eu tirei sei lá de onde), lá estava ele!
A passarela sobre o muro era meio apertada e nem toda extensão tinha o parapeito do lado interno, que dava pra cidade. Tudo bem que essa parte sem parapeito era baixa, mas tinha um molequinho que estava testando a sorte, correndo de lá para cá, e o pai estava cagando e andando pra isso. Fosse meu irmão, eu colocaria no ombro igual um saco de grãos e carregaria ali, mesmo que o pirralho esperneasse pelo muro todo. Minha mãe dizia que tem lugar que não é para criança. Ela achava um absurdo as escapulidas que eu e minha irmã dávamos para ir ao Museu de História Natural. Uma vez ela nos botou sentados no escritório, deu um cigarro para cada um e ficou falando que esse negócio de ver bicho petrificado podia impressionar a gente. Minha irmã respondia que ver as coisas sempre iguais e direitinhas não deveria impressionar ninguém. Nessas horas, minha mãe baforava e dizia que esse tipo de resposta de uma menina à mãe era influência minha.
Não era um muro chinfrim, mas também não era grande coisa. Quer dizer, é legal pisar num negócio milenar e pensar que você é a poeira que tocou aquilo agora e que aquilo vai ficar mais do que você nessa droga de lugar. Mas nas partes mais altas, fiquei pensando se as pessoas não iam ali para pular e isso me deixou meio ranzinza, sei lá por quê. Só sei que trovejou e voltei correndo para a estação; eu tinha que estar em Londres até o final da tarde para embarcar num voo noturno e ainda queria tentar um upgrade no check in.
A coisa é que entre York e New York uma porção de coisas podem acontecer. E aconteceu que toda a malha ferroviária britânica interrompeu os serviços por conta de uma nevasca. Eu mal consegui folhear o meu kindle de “Trama de um casamento” (sugestão do meu psicólogo de 200 dólares a hora, que disse que eu lembrava um dos personagens) e estava ali, parado em Leeds e com a sugestão de que eu cancelasse meu voo e procurasse logo um hotel. Pensei em ligar para o meu irmão, mas fiquei com medo da Fleabag impostora atender com aquela voz melosa que ela sempre fazia quando falava comigo. É difícil de admitir, mas ela estava me dando mole. E eu sei que eu estava me preocupando tarde demais, mas fiquei com um puta peso de consciência pensando no babaca do meu irmão que saiu da Califórnia para se enfiar aqui atrás dessa mulher. Ela era bonita e tal, mas de personalidade era meio mixuruca, meio vazia. E acho que para compensar esse peso de consciência eu lembrei que meu irmão tinha me falado de um lugar que ele gostava em Leeds. Um lugar que eu nunca entendi e que sempre achei cheio de gente sacana, desse tipo de pessoa que chora, mas é sacana. De qualquer forma, eu não tinha mais o que fazer, então deixei a mala no porta-volume e fui atrás do tal Hyde Park Picture House.
Era um cinema velho e talvez isso tenha pesado na ideia de cruzar a pé o centro da cidade até chegar ao bairro que dava nome ao cinema. Tinha também um Hyde Park, claro, que era uma versão menor e descampada do de em Londres. Passando por ali, imaginei os estudantes da universidade ao lado estirados nos dias de verão. Mas não era o caso; os que não estavam enfurnados dentro de casa, embaçando os vidros daqueles sobradinhos de tijolos empilhados no século XIX, estavam amontoados nos degraus úmidos que davam para a calçada, fumando maconha ou compartilhando narguilé. Era entre essas ex-moradias de operários e as sorveterias paquistanesas que se erguia um dos cinemas mais antigos da Inglaterra.
Bem na porta tinha um poste. Não um poste qualquer, um poste vermelho, com um par de arabescos que davam em dois globos de luz a gás, segundo meu irmão. Ele também ficava falando que o cinema tinha sido um hotel e que o prédio tinha arquitetura eduardiana, seja lá o que isso signifique. Mas eu fiquei encucado com esse lance do cinema ter sido hotel, especialmente porque fiquei matutando que determinados edifícios têm uma espécie de vocação para trancar coisas em movimento. Eu prefiro os museus, mas já havia passado da hora de eu tentar me identificar com as coisas que meu irmão gosta. Era um exercício de alteridade, dizia o sr. 200 dólares saindo do meu bolso, seja lá o que isso significasse. Além do mais, eu estava ali de bobeira só esperando a tal nevasca.
O piso do saguão da bilheteria era um mosaico meio escorregadio e a cabine era um desses cubículos típicos dos cinemas de filme. Não que eu veja muitos filmes, mas hoje em dia tem filme passando em qualquer tela, em qualquer lugar, então é meio inevitável. Perguntei ao bilheteiro hipster se eles funcionariam normalmente mesmo com a tal nevasca e ele me respondeu em tom de galhofa que só fechavam nas pandemias. Não gosto de gente que acha que tem intimidade para ser zombeteira logo de cara então nem perguntei o que ele indicava da programação. Dei as costas para pegar um folheto perto do cartaz colorido que anunciava a programação infantil. Na verdade, era uma madeira com o desenho de um Totoro mal-acabado feito a guache. Um papelzinho afixado dizia que “Mogli, o menino lobo” começaria em alguns minutos. Isso explicava o menininho dos cadarços mal amarrados que entrou de mãos dadas com o pai com cara de galã. Vi os dois passarem, de canto de olho.
Aí comecei a me perguntar se não seria estranho um adulto entrar sozinho numa sessão infantil. Eu poderia dar uma enrolada e pegar a sessão seguinte. “Agora seremos felizes”. Esse lembro de ter visto na TV, num daqueles Natais em que meus pais mal me olhavam na cara porque eu devia ter aprontado alguma. Era um melodrama e tinha uma menininha que decapitava a família de bonecos de neve no quintal de casa. Na sessão depois desse exploitation das neves seria “Cidade dos sonhos”, do tal David Lynch. Uma vez meu irmão me obrigou a ver uns pedaços; é desses filmes que você assiste porque te dá algum prestígio. Havia um mural com críticas de jornal entusiasmadas e mal recortadas, coisa de gente que faz as coisas com desleixo. E crítico já viu, né; é tudo um bando de recalcado que ou odeia tudo ou ama qualquer coisa. Mas o que me desanimou mesmo foram aquelas fotos do filme, quase da cor do poste. Já tinha vermelho demais naquele lugar, então decidi ver Mogli mesmo. Até porque é uma dessas animações que não fazem chorar; pelo contrário, a criançada ri do Mogli puxando o rabo da pantera e pulando na barriga do Balú.
Eu queria um ingresso no balcão, para poder dar uma olhada no cinema de cima, mas o hipster piadista disse que estava em reforma. Insisti, perguntei se não dava para dar só uma espiada, mas aí o sujeito resolveu ficar sério e começou a falar de umas coisas tipo andaime, massa corrida, e achei melhor deixar quieto. O ingresso tinha um design retrô charmoso, bem diferente desses papéis-bonina que a gente compra nas salas de shopping; esses caras sabem que esse lance de retrô, vintage virou tudo mercadoria. Você pegava na cabine e entregava para uma senhorinha logo ali, tipo dois passos adiante. Não fazia sentido algum, mas com o passar dos anos aprendi a relevar a estupidez desses protocolos do dia a dia. E também o cheiro de café acabou me distraindo desse tipo de bobagem. Vinha de um balcão que ficava encabulado entre as duas entradas da sala de exibição. É claro que havia manteiga com pipoca, fudges dos tipos mais variados e chá, sempre o bendito chá. Foi bem o chá que nosso amigo balconista – um velhinho com bochechas negativas e queixo saliente – veio oferecer.
– Dia! English, Irish ou Earl Grey?
– Um americano, por favor.
Ele me olhou como se ponderasse se continuaria a gastar seu sotaque de Yorkshire comigo. Eu arrisquei; era tudo ou nada.
– Um café.
O sr. cara-cadavérica-que-se-esqueceu-de-morrer empalideceu, tamanho o desapontamento. Eu odeio me sentir mal educado com quem está no bico do corvo.
– Esse Earl Grey é o quê?
Esse meu interesse dissimulado acendeu uma faísca de entusiasmo e corou as maçãs secas daquele rostinho comprido.
– É um chá aromatizado com laranja e bergamota.
– Me vê um desse então – eu pensava que raio seria uma bergamota…
– Por que não aproveita e leva como souvenir uma das nossas gravuras? – sugeriu o balconista todo serelepe quando trouxe o chá bamboleando na xícara. Essa gente é assim; você dá a mão e logo querem o braço todo.
Olhei as gravuras empilhadas num canto do balcão. Numa, a fachada do Hyde Park Picture House, com aquela fonte art nouveau que parecia tirada de algum túmulo de desenho do Scooby-Doo. Noutra, o tal poste, que ficava ali parado, meio que abençoando o cinema com sua luz a gás. Senti uma simpatia pelo tal do poste; ali todo inanimado, resistente ao mijo dos cachorros e ao vômito dos bêbados. Paguei a tal gravura, agradeci a sugestão e andei em direção à sala.
Com o pé na porta, tive a impressão de ver o menino dos cadarços desamarrados subir furtivamente as escadas que davam para o balcão. Danadinho; na certa se aproveitou da cara de bom menino e deu um nó no pai galã. Então, o gás da luz na minha cabeça lampejou uma ideia: se um garotinho podia explorar o balcão proibido sem ser incomodado, era injusto que eu que sabia amarrar os sapatos não pudesse. Notei que a senhorinha da porta conversava com uma família e o vendedor de chás e gravuras servia meu café vendido a outro. Foi tudo num piscar de olhos: com os passos abafados pelo carpete vermelho, dei meia volta e escapuli pelas escadas. Cruzei o vitral que ficava na bifurcação da escada e torci para que a porta do balcão não estivesse trancada. Estava tão livre quanto eu me esgueirando escuridão adentro.
O nosso amigo que perdera a aula de amarrar os tênis havia sumido; deve ter saído pela porta do outro lado e descido antes que o pai percebesse a demora. A reforma que havia interditado o balcão não parecia ser grande coisa. É verdade que as poltronas estavam protegidas por uma lona preta e havia latas de tinta, gesso e massa corrida entre os corredores. Tinha também o tal do andaime, que, pelo que vi, estava sendo usado para restaurar uns arcos rococós que cortavam todo o teto. Eu digo rococó, mas não sei se é isso. Não entendo bulhufas de arquitetura, então chamo esses detalhezinhos cheios de firulas de rococó. Além desses frufrus no teto, havia na parede da cabine de projeção três molduras entalhadas no gesso. Serviam para coisa nenhuma, pois contornavam a própria alvenaria; talvez por isso as janelinhas dos projetores parecessem tão esnobes posicionadas acima desses retângulos vazios. Notei (com atraso) que as portas tinham pequenos vitrais vermelhos, estampados com uma espécie de estrela branca no centro. Não era bem uma estrela; parecia mais um balão de onomatopeia, desses que a gente vê em gibi. Até combinava com esse negócio de desenho animado.
Quando o filme começou, escorreguei para o corredor rente ao balcão, tentando me manter incógnito. De vez em quando, eu olhava para baixo e via aquela criançada acompanhada pelos pais, curtindo a beça o menino lobo. Então, me veio uma coisa ruim que me fez pensar um bocado de outras coisas ruins. E se outro daqueles meninos escapulisse e fosse mais desbravador do que eu e nosso amiguinho dos cadarços? E se inventasse de ver o filme do alto do andaime? Não era uma hipótese tão impossível assim; moleque tem dessas coisas. E se antes eu havia ficado feliz de encontrar a porta aberta, agora já achava uma irresponsabilidade. Porque além do andaime, o parapeito não era tão alto assim. Mas a queda era. Qualquer criança que subisse ali podia querer se debruçar para ver aquelas guirlandas-rococós que atravessavam a parede externa do balcão. Ou podia querer se apoiar para tentar enxergar a tela original, pintada na parede atrás da nova tela, que agora exibia Mogli; eu tinha lido sobre tudo isso na Wikipedia um pouco antes dos trens misteriosamente pararem para a nevasca poder chegar em paz, mas não imaginei que uma sala de cinema pudesse causar tanta vertigem. Resolvi que era questão de caráter guardar aquele limiar perigoso e sedutor, que separava o mezanino de sacos de cimento e latas de gesso do mundo que se mexia na tela em ilustrações feitas de lápis de cor. Sentei-me no chão com as costas contra o resguardo do balcão, protegido daquela bobagem de menino criado na selva. Fiquei olhando minha gravura estática e tentando lembrar da musiquinha que minha irmã-xará-da-Phoebe-que-não-era-Waller-Bridge disse que era um poema. Mas é difícil lembrar de uma música quando tudo ao redor está cantando “Eu uso o necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais”. Que bobagem de música a desse urso babaca. A minha tinha algo com apanhar…
Eu ainda pensava nisso quando senti o chão estremecer enquanto o pó do gesso caia na minha cara pálida enquanto a menininha decepava bonecos de neve enquanto o chão se abria em fendas e rasgava o carpete enquanto as poltronas debaixo da lona iam uma a uma sendo engolidas como os dentes de uma boca de bonecos de neve nocauteados pela pá de uma criança e…
– Que diabos você está fazendo aqui?
Era uma mão no meu ombro. A mão de um cara no meu ombro. Eu detesto gente que fala tocando na gente, no ombro da gente. E aquela mão estava insistindo nisso.
– Blábláblá estava trancada. Blábláblá conseguiu entrar?
Eu estava sonolento para tentar entender todas as palavras. Tinha tirado uma pestana. Quer dizer, tinha dormido brabo, jogado fora 6 pounds do ingresso, mais o chá de bergamota, que tombou sobre a gravura e borrou meu próprio poste vermelho.
– Bem, não interessa. Você precisa se mandar daqui. Se alguém te…
– Vocês deviam desistir dessa reforma e derrubar logo isso aqui. É alto pacas. Já pensou se alguém cai lá embaixo?
O dono da mão, que na verdade era o projecionista, me lançou uma merda de olhar daqueles bem condescendentes. Depois, mudou o tom de voz como se falasse com uma criança bem pequena. Ele tinha mania de usar essa palavra, “bem”.
– Bem, nós certamente podemos encaminhar a sua sugestão para a administração. Ou quem sabe até para o arquiteto. Mas agora eu preciso que você me acompanhe.
Ele me deu a mão para me ajudar a levantar e eu aceitei por educação. Vi que Mogli & cia tinham se mandado. A sessão seguinte também já tinha sido. Passava o tal do “Cidade dos sonhos” que meu irmão adora, embora eu duvide que ele entendia. Não que ele seja burro ou coisa assim; ele era inteligente pacas para um ex-roteirista, mas é que a história toda era meio delirante. Passava-se em Hollywood; vai ver era por isso que meu irmão gostava. Por coincidência, a cena que estava na tela no momento em que me levantei era dentro de um cinema quase tão vermelho quanto o nosso amigo aqui, o Hyde Park Picture House. Era uma cena com uma mulher que cantava em espanhol. Meio triste e tal. Eu me aproveitei daquela condescendência toda da mão e do nosso amigo projecionista e perguntei como quem não quer nada se eu não podia ver o filme até final. Ele concordou, desde que eu prometesse descer e que descesse bem discretamente. Eu brinquei que poderia mirar numa das poltronas e me atirar dali mesmo, mas ele não achou graça. Pensando bem, nem eu. Às vezes eu falo essas bobagens. Minha mãe sempre dizia que o humor britânico era rebuscado para nos lembrar quem tinha sido colônia e quem tinha sido colonizado.
Eu, que já tinha visto uns pedaços do filme, continuei sem entender nada. Mas continuei observando a sala, desta vez sentado bem debaixo do balcão. Se a nevasca produzisse uma avalanche e o balcão desmoronasse, a latas de massa corrida cairiam sobre a minha cabeça. Eu ficaria para sempre encarando os ponteiros do relógio construtivista que guardava a saída de emergência, ou os lustres que ora pareciam vitórias-régias, ora mesogléias de medusas. Talvez fossem um híbrido dessas duas coisas. Mas o Hyde Park permaneceu em seu devido lugar e assisti com atenção tudo o que havia de fixo dentro do cinema. Eu gosto de saber quando estou indo embora e quando não vou voltar mais.
Na saída, acenei com a cabeça para o balconista-vendedor-de-chás-e-gravuras e ele me pareceu supreendentemente mais bochechudo, como se, num passe de mágica, tivesse acabado o efeito de uma harmonização facial.
– Borrou. A gravura.
Eu demorei um segundo para perceber que ele falava comigo; talvez porque o sorriso cheio de dentes simpaticamente encavalados não combinava com a constatação.
– Pois é. Virou uma gravura aromatizada. Cheirinho de bergamotas.
Nosso amigo balconista olhou de mim para a gravura e da gravura para mim.
– Mais do que isso. Parece que ganhou certa…
Ele mexeu as mãos de maneira esquisita. Então, mirou nos meus olhos e abriu um meio sorriso de quem decide não liberar as palavras. Eu me despedi dizendo que aquele era um cinema muito vermelho, mas que aquele filme era meio fajuto.
No hall de fora, vi que havia um rabisco bem em cima do pobre Totoro. Na verdade, parecia algo numa dessas línguas árabes, em giz de cera. Aquela me matou. Aquele bicho japonês rabiscado com um troço árabe nessa múmia de cinema no interior da Inglaterra. E num giz de cera vermelho, ornando com a pintura. Fosse em Nova York, durante o governo Bush, esse cinema já estaria fechado. Aí comecei a ficar preocupado: e se fosse algo ruim, tipo algum palavrão e alguma criança visse? Porque claro que qualquer criança ia parar ali para olhar a porcaria do quadro do Totoro. E as pessoas têm esse péssimo hábito de pichar “foda-se” por aí. Decidi que o melhor a fazer era apagar com a manga da camisa, mas antes tirei uma foto para procurar o significado daquilo na internet. Não precisou: Aziz, o uber que me apanhou na porta do Hyde Park Picture House, traduziu. Disse que estava escrito “hold on”. Achei graça, mas não tive tempo de comentar; meu celular tocou e meu irmão foi logo despejando que a Phoebe dele disse que era para eu ficar onde estava, que a nevasca não me deixaria sair da Inglaterra. Por um instante, lembrei da outra sugestão do nosso amigo psiquiatra de duzentão, que disse que eu deveria ir ao Brasil para pegar um bronze, um pouco de vitamina D. Logo eu, que detesto sol, agora podia acabar atolado na neve, entre os sobes e desces daquela cidade. Desliguei e perguntei ao nosso amigo Aziz o que havia para se fazer antes que todos virássemos esses bonecos de neve tortos e despedaçados. Ele riu e comentou sobre um tal de museu das armaduras. Ficava bem no centro da cidade. Pensei que já que eu tinha ido ao cinema pelo meu irmão, nada mais justo que eu fizesse alguma coisa por mim. Cancelei meu voo sem sequer remarcar a passagem. De repente, lá estava eu, entre elmos e escudos, escutando a musiquinha abafada de um carrossel montado às margens do canal ali perto. Pelas vidraças do museu se via toda a cidade, que se recolhia nas casas ou dos pubs. Então, eu pensei que aquele seria um bom lugar para hibernar.
ÁLVARO ZEINI é Doutor e mestre em multimeios, especialista em argumento e roteiro e bacharel em cinema e vídeo. Passeia entre a crítica de cinema e o roteiro, mas tem se arriscado por outros tipos de escrita. Nas horas vagas, escreve razoavelmente e publica críticas de cinema na revista Pós-créditos. Nas horas ocupadas, é professor universitário. É autor do romance “Caso o país acabe, envie-me a Haruki Murakami”.