FERNANDO BOGADO (Buenos Aires, 1984). É escritor, jornalista e professor da Universidade de Buenos Aires. Escreveu, entre outros, o livro de poemas “El Desempleo”(Nulú Bonsaí, 2021), o romance “Tierra ganada al río” (Letras del Sur, 2018) e “Jazmín Paraguayo. Poesía reunida 2014-2006”. Participa com de BogadoCuman, projeto de poesia e música; e organiza desde 2010 o ciclo de poesia e música “Tercer Jueves”. Os três poemas abaixo foram traduzidos pelo escritor, dramaturgo e ensaísta Marcus Groza.
O escritor latino-americano e a tradição
Um escritor coça a barba e pensa com a barba
“meu compromisso é com toda a tradição ocidental”;
lembro que nunca me senti tão latino-americano como
no dia em que escutei um discurso de chávez, careca da químio
em um hotel relativamente badalado de la paz.
chávez citou heidegger e falou de nazismo e nietzsche;
eu estava lendo sobre literatura argentina
e tinha vontade de ir ao banheiro público
(um sujeito fechou justamente o caminho do banheiro,
escutei um pouco mais o discurso,
pensei nos meus amigos, nos que tenho por perto e nos de longe:
sempre penso nos meus amigos, não sei, é essa coisa
de tocarem a campainha às seis da tarde,
e bem na hora eu ocupado com alguma coisa,
eles passam um tempo e ouvimos música
e vemos um filme de ação com coisas que explodem)
Tenho um amigo que não vejo há muito tempo, arias: foi para o norte
o mesmo norte que visitei quase fazendo turismo estudantil,
e pensava que ia vê-lo: escrevi um poema sobre ele
e lembrei nós dois comendo biscoito, não é pra me fazer de pobre,
mas a gente comia biscoito porque a grana era curta.
Penso nos poetas cagados de fome
ou vendendo livretos nos trens… digo “poetas”,
caras que escrevem bem, nada de bugiganga que se põe na geladeira
ou se dá de presente a alguém, nem se tira dessas fotos idiotas de facebook
com borda escura e uma frase que te faz pensar na vida.
Não sei como anda chávez e evo, mas eu neste momento lembro
que estava enjoado pelo horizonte irregular
e dentre toda buenos aires tinha que ser eu
a pensar que tudo é plano e transitável. Pensei isso
quando fui a machu picchu e vi a ruínas, e pensei nos incas cagando na terra
e cobrindo a cagada com mais terra e deixando ali
pra que o tempo passe e não reste mais nada,
e pensei estou envelhecendo, já tenho cara de mais velho,
me surpreendem outras coisas,
meu cheiro está diferente,
e depois voltamos de machu picchu de trem, eu lembro,
e pensei que o trem era de uma empresa inglesa
que vendia tíquetes em cuzco bem ao lado de um mc donald’s, acho,
e muito perto dali tinha um starbucks que queríamos entrar,
mas fomos enxotados pelos preços,
e lembro que a nossa dúvida era
entre sacar soles ou dólares do caixa eletrônico
pela questão do câmbio e por não saber
qual dos dois mais compensava:
nunca me senti tão latino-americano.
Há pouco encontrei…
Há pouco encontrei um filhote de pomba semimorto
tentando se despregar do solo
indo em direção a uma casa na vila bosch.
Fiquei um tempo observando: dois meninos de dez anos, calculo,
estavam ao meu lado.
O filhote deu dois saltos, entrou
em uma casa com cinco gatos
então passei a dar o bicho por morto.
Não sei como, não me perguntem,
o filhote saltou e saltou
saiu pela porta da casa,
sobreviveu aos gatos
então decidi cuidar dele até que possa voar,
e seguir sua vida
e ser comido, em última instância,
por outros gatos, ter outras feridas.
No terceiro dia que estava em casa, em uma jaula que me emprestou meu tio
– que abandonou a paixão que tinha por cuidar de passarinhos
de todas as cores, de todos os tamanhos,
numerados, marcados,
ordenados em famílias -,
amanheceu morto
no mesmo dia do tsunami no japão.
Na noite anterior estava vivo.
Há pouco eu estava limpando a jaula,
tirando as folhas de jornal onde o filhote cagava
com duas ou três notícias culturais
de pouca importância.
a. (Herodes)
a Raúl González Tuñón, que escreveu “quero pôr uma bomba”.
Quase uma década de gente
flutua na água.
Disseram:
“deixe que os mortos
enterrem seus mortos”.
Como enterrar na água
o que já está na água?
Uma década de nomes
flutua no rio:
Hoje em dia 20 centavos não dá pra comprar nada.
Hoje na TV exibem documentários:
os canais que passam “história”
o dia todo…
Alguns grupos estudantis
de esquerda
fazem festivais latino-americanos
com comida típica
e uma ou outra reivindicação.
Poetas bebem vinho
e comem
em cumbucas floridas.
Os mortos enterram seus mortos,
bem sei.
p.
O terrível não é a morte
mas
as pequenas perdas
de que ninguém tem pena.
Uma vez
conheci um açougueiro
chamado paz
que perdeu o dedo mindinho
e parte do anelar
com uma facada.
Conseguiu duas semanas
de licença
e alguns pesos de benefício.
De paz
ninguém olha
a mão.