Se não fossem as unhas de Ana, quando ainda recém-nascida, alcançassem o rosto para fazer arranhões vermelhos, desses que ninguém sabe a origem porque é uma pequena gente sem muito o que falar. Se não fossem as mordidas, mesmo sem dentes, nos peitos da mãe toda vez que mamava. Se não fosse o choro de Ana nas madrugadas, se não fosse aquele banho todo cheio de não-banho. Se não fosse nada disso, a vida de Ana poderia não ser um “morro-não-morro”.
É que a vida da gente, mesmo sem as lembranças, elas deixam marcas. Ana nem sabia como era recém-nascida, não se lembrava do trabalho que dava pra mãe. Pouco menos, sabia que podia deixar a mãe em estado de depressão. E, mesmo sem querer, nessas encruzilhadas das experiências, a menina fez.
Márcia, a mãe de Ana, mesmo querendo um “morro-não-morro” , cuidava. Cuidava não porque cuidado é de outro jeito. Márcia tentava. O balbucio do nascimento tornou Márcia na mãe que num sabia ser mãe. Mas quem sabia? Parecia que toda aquela gente cheia de conselhos maternos conhecia a maternidade. Márcia não. Pra mulher, com o peito já caído e a pele enrugada, nunca conseguiu ser a mãe que as outras mães queriam que ela fosse.
Ana desenvolveu o amor de filha por Márcia, Márcia quase devolveu esse amor. Se não fosse por um tiquinho de “morro-não-morro”. Ah, se esse elo entre as duas pudesse ser mais forte.
A voz de Márcia tentando cantar pra Ana a fazia chorar mais ainda. O alimento do peito de Márcia para Ana fazia Márcia não desejar nunca mais a menina. A voz e o peito da mãe. O choro da filha. As duas não queriam estar ali, as duas queriam fugir. Ana sem saber ou conhecer essa palavra, queria tá longe. Longe da mulher que não suportava seus choros. Márcia, por sua vez, até queria Ana por perto, mas só quando a menina tratava de dormir porque aí ela esquecia das existências da vida.
Ana cresce, Márcia envelhece. Tudo se distancia. Ana não precisa mais daquele leite. Márcia não precisa mais colocar Ana pra dormir. Essa foi a sorte do não morrer das duas. No embalo desse espaço num tinha hora pra conversa. Foi tanto choro que Ana e Márcia queriam viver era mesmo no silêncio. Era preciso ir se acostumando com bocas caladas. Márcia, que mesmo com o marido que não era pai, preferia ficar quieta e não lembrar da maternidade. Ana, aprendeu a ser igual a mãe. Calou-se. Não entendia o motivo, mas calou-se.
A menina já com 10 anos não sabia pronunciar nenhuma palavra. “Sua filha ainda não aprendeu a ler, é a mais atrasada da escola, a menina quase não fala”. Márcia consentia sem dizer nenhuma palavra. Conversava com a filha não, como a menina podia escrever algo se nem palavra conhecia?
Márcia, sem saber, queria que a garota conhecesse o menos possível dessa sobrevivência. É que essa mulher cheia de dor da maternidade – quer dizer, maternidade não, tortura – não queria que a filha soubesse do sofrimento que era querer saber de tudo. Precisa saber palavra não, precisa saber o que é filho não, precisa saber o que é casamento não. Todo mundo vai morrer. A gente só tem que esperar a nossa hora e pedir pra sofrer menos, falar menos, viver menos.
Na inércia da vida, essas duas mulheres se conheciam e se abraçavam. Na Terra, com tudo girando, elas se distanciavam.
Marido não. Pai não. O homem era mais o homem de rua, desses que sabe viver mais do que qualquer um. Márcia olhava pras palmas da mão, queria era se estapear pra ver se assim morre. Ana olhava no espelho e via que da barriga enorme de tanto comer de nada saia, nem palavra, nem choro, nem amor. Já o sujeito – que deveria ser pai – falava e falava muito. Falava de dor. Cachaça que no dia seguinte virava dor de cabeça. Dor de cabeça tratada com silêncio por Ana e Márcia.
As duas, já mulheres, sabiam que o único ato de amor que as uniam era a boca calada e a alma cheinha com o peso das palavras. Dava não. Ana, sem saber, sabia do que fez com a mãe. Márcia, sem querer, sabia que a filha não teve culpa pelo sofrimento de parir alguém. O silêncio do sono, das duas juntas. O silêncio. Esse silêncio que tanto tem pra falar era o que fazia de Ana e Márcia as mulheres resignadas.
É que Márcia não esperava, não estava preparada, mas não era só na hora do parto que a dor de ter filho se difundia. Era também depois. E depois. Ninguém a ensinara o que era maternidade compulsória. Ana não esperava logo sair pelas entranhas dessa mulher que pouco se conhecia.
Ninguém conhece ninguém. Todo mundo conhece o medo. Principalmente a dor. Ah, mas essa, elas sabiam muito.
Ana tinha mãe não. Também não tinha pai. Márcia não tinha filha não e nem marido. Tudo o que se tem na vida é a família que se constrói não. Essa construção não cabia em Ana, Márcia e o não-pai e não-marido. Isso não era família não. Mas também era porque um herdou do outro o silêncio de muito sofrer.
Márcia queria era morrer e não viver nesse “morro-não-morro”. Queria que Ana e o não-marido também morressem. Escutou tanto, quando criança, que o céu é o dos melhores lugares que queria partir era pra lá.
A família que não era família só conhecia o varal cheio de roupa, o homem cheio de cachaça e a casa cheia de nada, nadinha. Tão nadinha que aos poucos se formando um buraco ali na casa. Buraco mesmo, desses que a gente cai e se não é salvo por alguém morre pra sempre lá, no escuro, embaixo da terra.
Era deus escutando Márcia. A mulher queria morrer, pois que fosse logo pra ser consumida pela terra. Mas nem isso ela conseguiu. Buraco baixo demais pra morrer. Fundo demais pra viver muito tempo.
“Pois, mãe, trate de cavar mais aí esse buraco”, foi das poucas frases que Ana dirigiu à Márcia. Se viver é ficar calada aguentando e se escapando de sofrimento, que seja de um lugar bem lá debaixo. Ninguém as via, ninguém as queria enxergar. Mas uma coisa que não explicaram pra elas: mulher é vista não. Mulher é boa calada. E Ana e Márcia cumpria mesmo o papel que os outros queriam.
Quando ouviu a porta batendo, sentiu o homem entrar. Nesse momento, Ana e Márcia se enfiaram naquele buraco. Agarraram-se. Ficaram juntas. Num queriam mais essa vida não. Num queria nem ver cara de homem ou de qualquer outra pessoa. Ali, naquele buraco, que nem eco fazia, as duas esperavam a morte como sempre fizeram.
Márcia com a pele enrugada de tanto sofrer. Ana com a pele macia do tanto riso preservado. No buraco da vida das duas, as bocas caladas se uniam, a descoberta do que era ser mãe e filha nascia. Então é isso: ser mãe era acolher o sofrimento da filha, ser filha é suportar o sofrimento da mãe.
E quem vai dizer pras duas que, mesmo sem falar, elas já sabiam muito da vida?
Andriele Moraes tem 25 anos. Pernambucana residente em São Paulo, é jornalista e uma das criadoras do grupo de leitura e podcast “Clube do livro feminista”.