O céu da barriga aberto para a rua

Tenho, desde pequeno, uma habilidade inútil. Sempre sei quando começa o inverno. Primeiro, o ar chega mais úmido até as bochechas, e as nuvens, mais fechadas, rodopiam no céu pálido e desmaiado. Para que as primeiras gotas rolem, muito gorduchas, sobre o telhado de barro, é questão de tempo. Como disse, uma habilidade inútil.

Nunca vou esquecer a imagem do velho Lorota, o olhar enrugado, ouvindo, com desaprovação, que estava ansioso pelo inverno daquele ano, que eu adorava perseguir os insetos de chuva e derrubá-los quando ainda estavam voando.

— Deixa eu contar uma coisa sobre os Siriris, — começou ele. Quando chove, o Siriri abandona o lar e voa — dizia isso fazendo a mão dançar no ar — eu não sei o que ele procura, menino, mas ele continua até perder as asas. Quanto tempo leva até chegar esse momento? Não sei dizer a você. Eles, porém, só têm um instante curto, entre o voo e a queda, atrás do que procuram, — depois perdem as asas, e aí é o fim.

Na época, pensei que muita exposição ao sol pudesse ter danificado o juízo do velho Lorota — como alguns garotos o chamavam, por causa das coisas que contava. Entretanto, guardei aquela sua história ainda por bastante tempo. Tinha medo de uma sobre certo menino na janela. Na história, ele ganhou um buraco na barriga ao fazer traquinagem, por assim dizer.

“Ainda encaro aquele menino”, contava o velho, “com o céu da barriga, aberto para rua, onde outros meninos, assim como ele, não sabiam brincar sem rebentar o próprio corpo”.

Muamba era uma dos nossos e afirmava já ter visto o menino na janela do Pádua, o português. Disse ainda que além da barriga aberta tinha os olhos saltados das órbitas. Alguém perguntou se tinha visto antes ou depois de enfiar a cara na lata de Cola Cimento, mas ela não soube responder.

Muitos anos depois, ia deslizando pelas luzes daquela avenida. A sola do All Star preto gastava o asfalto. Àquela hora parecia um anfiteatro explodindo em cores febris. Irrompi pela rua principal e bêbados, e drogados, e outros esquecidos vieram me receber, só a menina fez pouco caso, abraçada à boneca de pano — tinha alguns rasgos e parecia imunda. Não a boneca, mas a menina. Estava metida num vestidinho roxo, onde algumas flores brotavam da estampa. O cabelo rareava na cabeça, o pouco estava bem preso num coque, alguns fios apontados para o alto. Nos lábios dela havia alguma prece lamuriosa, seguida pelo movimento vicioso do corpo que ia para lá e para cá, às vezes mais rápido, às vezes mais calmo. Ela, a menina, na verdade, não era bem isso: uma menina. Agora tinha idade. E linhas afundadas na carne. Fitei o pequeno borrão até o fim da rua, antes de virar a esquina. Ainda com os olhos nela, vi que debaixo da fumaça e penumbra muito daquela infância ainda queimava.

Naquele inverno, mais longo e rigoroso dos últimos anos, não havia mais nada a fazer senão passar o dia em frente à TV, acompanhando as programações. Uma reportagem local dizia que as escolas permaneceriam com as atividades paralisadas até a água recuar. Dois pavilhões, incluindo o que ficava minha sala, estavam debaixo d’água. Depois o repórter fez um comentário comovido sobre a situação dos moradores de rua. Então descobri uma palavra nova e a levei até meu pai, na cozinha, sob a forma de uma pergunta. Ele respondeu: hipotermia é morrer de frio. Eu lhe disse que certamente tinha isso, pois, também estava morrendo de frio. Ele pediu para que eu ficasse calado e não dissesse mais bobagens.

O sol saiu, dali a uns dias, como uma bala abrindo passagem entre as fibras na carne do peito de um negrinho, voltando da escola, desapercebido. E já não era mais inverno. A cidade e o mercado fervilhavam e a vida queimava de novo. Eu nunca mais vi o velho Lorota depois disso. Ainda hoje paro para vê o voo dos Siriris, em dias de chuva. Sinto que eles têm algo importante a me dizer.

Pablo Alves, 23 anos. Paraense. Começou a escrever em 2017, como fuga aos momentos de ansiedade. Entretanto, o amor pela literatura se iniciou muito mais cedo, aos 13 anos, quando, assistindo a certo programa de TV, decidiu que um dia escreveria um livro. Tem um conjunto de oito poemas, publicados pela Revista Aboio, em formato online, intitulado “A luz do blues que reside em seus olhos”.

1 Comentário

  1. Sandra Modesto disse:

    Texto belíssimo!!

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