Escreve-se roupas

Na parede do portão da casa, avista-se, miúdo recado: escreve-se roupas. Placa feita pela menina de oito anos. Quatro camisas de linho tremulam no varal atrás do portão. Mangas longas em contornos vazios chacoalham ao vento. Uma senhora carregando muitas sacolas para de frente para o recado. Espreme a retina enxuga os olhos aumenta a retina. Reles coragem salta da cara. Despenca as sacolas no chão, bate na porta da menina, bate na porta da menina, bate na porta da menina, a menina corre desconfiada até a porta, “Pois não?”. “Gostaria disso que está escrito bem aqui”. “Que escreva roupas para você?”. “Sim, escreva para mim uma linda roupinha de batizado para as minhas netinhas, mas só as que escaparam da minha barriga porque fugi do casamento”. “A senhora é minha primeira freguesa. Tem uma cor preferida?”. “Tenho sim, azul”. “Está bem, espere um pouquinho aí”.

A menina foi até o quarto, abriu a mochila, rasgou um pedaço de papel do caderno da escola, com o lápis contornando firmemente letras seguidas por mais letras, deixando marcas no papel branco seguinte vestidinho batizado de criança na cor azul escrevo para a memória sempre te lembrar guarde esse bilhete em local seguro. Completou com o desenho de um trapézio e a palavra AZUL dentro dela. “Aqui está senhora”. “Quanto é?”. “Custa um sorriso”. 

A senhora desdobrou o papel, olhou para o escrito olhou para a menina olhou para o escrito olhou para a menina e para a ponta dos pés da menina. Sapatilha branca, quadriculado rosa “E esses sapatos? Quero um igual ao seu”. “Está bem”. A menina escreveu sapato pé direito com solado que não suja no chão sapato pé esquerdo com solado igual do direito não pode sujar nunca. Guarde este bilhete em local seguro. “Tome aqui os seus sapatos”. A senhora sorriu amaciando o rosto desabotoando o corpo de três pesos estranhos, uma ombreira do passado, uma cava apertada e uma gola levantada. Com dificuldade de abaixar até os pés, estes, destinados desde sempre a usar chinelos desgastados, olhou para o próprio pé e quis calçar outra coisa. “Quero um sapato igual ao seu. Faz meu número de pé”. “Está bem, espere aí”. A menina voltou para o quarto, rasgou duas folhas inteiras de caderno voltou correndo para o portão. “Me dá o seu pé”.  A idosa esticou a perna entre as grades do portão enferrujado. A menina colocou o papel contornando os pés da idosa “Se você quer mesmo um sapato igual ao meu, esse não vou poder colorir porque ele é branco com essas tirinhas rosa, tá vendo?”. A idosa calçou os sapatos. “Não são muito confortáveis, mas estão bonitos”. “São confortáveis sim, tia”. “Não são, menina”. “Você viu o que tem dentro da sapatilha? olha, olha…”

(palmilha superconfortável) 

“O que está escrito aí? Me arruma um pouco de água?”. “Tá bem, já volto”. A menina correu desengonçada, arranhando a cabeça nas camisas de linho penduradas, alcança um copo em cima da pia, pequeninas mãos mal dão conta de segurar o jarro com água. Ao encher o copo metade da água cai sobre a sapatilha preenchendo de borrão rosa a ponta dos pés. A menina corre de volta para o portão e entrega a água. “Seu sapato está manchado”. “É que caiu água, tia, mas daqui a pouco seca e eu coloro de novo”. “Menina, não estou me sentindo bem”. A idosa desmaia segurando sobre o peito o vestido azul escrito. Clientes do bar em frente vieram socorrê-la e levam um corpo idoso flácido para dentro do bar. Atarantados, improvisam primeiros socorros. A menina sente medo. Não queria que morresse a primeira freguesa. 

Atrás do balcão de bebidas, gim, whisky falsificado, rum, cachaça, licor de cereja, a menina se ajoelha, pede perdão pelos pecados próprios e da idosa que gosta dela porque é a única pessoa que se importa com as roupas que escreve. “Por favor, por favor”, ela pede, de joelhos porque aprendeu assim. “Por favor”. A parada cardíaca não veio e a idosa voltou a respirar e ter cor no rosto. “Tia! Para comemorar vou fazer um vestido lindo, lindo pra você”. Corre de volta para o quarto e arranca mais uma folha de caderno. Vestido até o joelho com bolinhas rosas e sapato branco brinco marfim para usar quando tiver vontade de ser a mais bonita

Na sala, a mãe da menina pinta os cabelos de uma cliente com tremenda meticulosidade. Oxigenar cabelo dá muito trabalho. A menina prefere escrever roupas, manual próprio das coisas de se ler. Gosta de ouvir as roupas que escreve mesmo com o desinteresse da voz da mãe saia de flores calça colorida bolsa de gatinhos camisa igual do pastor vestido de ir para festa. Roupa de escrever não pode apertar não pode machucar não pode matar. Nem sempre palavras são de gravar no papel. São de rodopiar por aí.

Volta para o bar e avista a idosa sentada na mesa comendo um prato de batatas fritas repleto de sal. Quando vê a menina, a idosa mostra todos os dentes da boca. “Vi a porta do céu, certeza que vi. Mesmo não sabendo ler, na porta de Deus, tinha uma placa”. “Igual a porta da minha casa?”. “Era”. “Mentira. Deus não pode escrever roupas. Não tem roupa no céu”. “Tem sim”. “Como que você sabe, se não passou da porta?”. “Um anjo usava o vestido azul que você me deu”.

Salma Soria é Escritora e poeta. Publicou os livros de contos “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” e “Muitas roupas aqui”.

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