Coisa Amor

(Koi No Yokan)

Nunca tive certeza

Se coube a ele convidar-me,

Ou eu o convidei.

Tão infinito o nosso vínculo.

Emily Dickinson, A Branca Voz da Solidão.

Os pequenos fótons da lâmpada fluorescente presa ao teto escaparam pacotes, carregando suas informações, realizando, através do ar, seus caminhos inexoráveis, porque foram aqueles, e não outros, os traçados, desde o começo dos tempos, pelos primeiros choques entre as primeiras menores partículas que, embora num trajeto absolutamente inapreensível, porque divinamente omnímodo, influenciaram-se, colidiram-se, expandiram-se, perturbaram-se em mútua influência, criaram o universo, o encontro, empurraram-se, ao longo da história, de um tal modo específico que, naquele instante, aqueles pequenos fótons da lâmpada fluorescente presa ao teto escaparam pacotes, carregando suas informações, realizando, através do ar, seus caminhos inexoráveis, refletindo o rapaz, refletindo o que seria o rapaz, desviaram o périplo cuidadoso e penetraram córneas, íris, humores vítreos, pupilas, retinas e nervos ópticos da moça, virtualizando uma imagem dele nela, dentro dela, projeção introjetada que o cérebro dela logo tomou para si, desinvertendo-a e construindo, teimoso, uma impressão sua, fazendo ameaçar desaparecer as tais fronteiras entre cá e lá, olho e objeto. 

Ela piscou um pouco perturbada, constrangida de si, deixando, porque tinha de fazer algo, o olhar escorregar por outras superfícies, embora, no íntimo, mantivesse-se concentrada na figura que acabara de lhe aparecer – seu corpo lhe acontecia alheio, era tudo, desde os olhos que, por força da natureza, parecendo ver, não mais que captavam ondas, vibrações, cores e formatos então inaglomeráveis, intraduzíveis, até as extremidades nervosas sob os folículos pilosos dos braços que, estimuladas pelas ligeiras perturbações causadas pelo sopro do ar-condicionado sobre os pelos, transmitiam impulsos diluídos em movimentações cerebrais de maior importância, uma mentira: por fora, uma moça íntegra, olhando os ladrilhos do chão, alisando, talvez por frio, os próprios braços, por dentro, a clara dissociação, brutal ruptura, entre experiência e pensamento.

Ela bebeu um pouco, conversou, deambulou angustiada, urgente, em falsa deriva. 

O rapaz estava então à sua frente, do outro lado da sala, e começou a se desvendar num crescendo: dentadura reta, mas proeminente, barba marcada, olhos de traço bom, olhar (porque ele a olhou) denso, plúmbeo, não de ressaca, mas, mais, de voragem, um caminhar meio desengonçado, uma voz grave, meio rouca, firme. Ele tinha um jeito, um jeito dele, que ela não conhecia e que, portado por ele, aproximava-se dela, nele e com ele, pois estava ele vindo em sua direção, e ela deveria estar toda concentração em sua vinda, porque agora ele estava a apenas alguns passos, e também toda preparação, pois caso ele, num último instante, desviasse dela e se dirigisse à porta da sala para ir embora ou à bancada da cozinha para pegar mais cachaça, ela teria de relaxar a tensão de seu diafragma de forma discreta, quase imperceptível a ele e aos amigos que estavam na festa de aniversário de um outro amigo, o amigo em comum, pois sua presença e aproximação lhe haviam causado tamanha tensão a ponto de suspender brevemente a respiração, uma de suas funções vitais mais vitais, tão vital que o corpo havia tido a fina sabedoria de lhe conferir autonomia nervosa parassimpática, autonomia que, entretanto, como agora, era submetida a alguma interferência volitiva, se é que era por vontade que ela prendia a respiração e não por pressão outra, vinda agora do sistema simpático, e agora ele estava a menos de três passos, mas não havia nem preparação, nem concentração, pois logo elas, a preparação e a concentração, tombaram uma na outra, descarrilharam e tomaram o rumo de uma memória de quando estava sozinha em casa e encontrou um escorpião debaixo da última gaveta do armário, parou com medo e excitação diante do bicho, tremendo com ódio porque ele (o bicho) havia aparecido e não sumiria até que estivesse não outra coisa menos que morto, esmagado sob uma vassoura, um sapato, um livro pesado, porque ela não o conhecia, não conhecia os seus jeitos, e ele tinha um jeito, um jeito dele, até que ela o cutucou com a própria gaveta tirada do armário, e o bicho, com movimentos de chicote do aguilhão em todos os sentidos e direções, movimentos que muito a surpreenderam, porque ela achava que o ferrão se movia sobre um eixo longitudinal ao corpo, se é que era um corpo aquilo, à estrutura, ao exoesqueleto, que seja, do escorpião, veio correndo para cima dela, e ela só pôde entender que ele era mais rápido, muito mais rápido que, por exemplo, uma barata, que ela já conhecia, quando, no átimo de segundo posterior à picada, ela compreendeu que não teria podido se preparar por mais que se concentrasse, porque só se conhece a picada de um escorpião depois de se ter sido picada por um escorpião.

— Oi.

O rapaz então a evocou, a puxou para fora de si, e ela relaxou, tirando proveito da liberação de tensão de seus músculos, caiu-se toda sobre o quadril direito, voltou a respirar parassimpática, o ar que agora carregava o cheiro dele, partículas dele e portanto pedaços ínfimos dele aspirados, entrando calmo por suas narinas, excitando as células sensoriais receptoras e atravessando as vias respiratórias superiores, turbilhando-se breves em suas conchas nasais, esquentando-se, umidificando-se, depois descendo até os pulmões (que se expandiam e se retraíam conferindo aos seus seios à mostra apenas em seus contornos internos, sugestões convexas, um suave porém nítido sobe-e-desce), onde então se espraiava em mil ramificações e subramificações, brônquios, bronquíolos e alvéolos, uma verdadeira árvore posta de ponta-cabeça, cuja estrutura capilarizada proporcionava a troca, ganho e perda, de pequenas moléculas com outras pequenas moléculas de pequenas células da corrente sanguínea, que, bombeada em sístoles e diástoles pelas estrias musculares cardíacas sob a batuta rítmica do nó sinoatrial, que disparava impulsos elétricos contínuos e também improváveis, improváveis porque, sendo elétricos os estímulos, era surreal que, de dentro do seu tórax, como se de uma máquina, produzisse-se a todo instante uma pequena eletrocussão que lhe marcasse o passo, correria por todo o seu corpo e irrigaria toda a sua carne, todos os seus músculos, que, liberados da tensão de segundos antes, encharcar-se-iam de um bom sangue agora quase filtrado de cortisóis, então ele em parcelas estaria também nela e correria por ela sem que nem ainda a houvesse tocado.

Mas, depois de alguma conversa, as cordas vocais dele vibrando em oclusões e ângulos específicos durante a passagem da respiração por sua laringe e chegando até os ouvidos dela pelos deslocamentos de ar, da massa de ar entre ele e ela, que lhe alcançava os tímpanos, que retumbavam aos milímetros e, assim, chacoalhavam ossículos, cristais e cóclea, causando-lhe essa impressão sonora que era achar que estava ouvindo a voz dele, ele a tocou, roçou os dedos da mão direita em seu rosto e, indo adiante, cruzou-lhe o emaranhado de matéria morta que lhe descia em fios negros da cabeça aos ombros e que, mesmo morta, fez que descesse, viva, agora por dentro, uma onda eriçante que arrepiou a moça inteira enquanto ele aproximava o rosto dele ao dela, enfiando-lhe entre os dentes, à luz da cavidade bucal, uma língua que com sua própria língua ela teve que domar, pois começara avançando demais, ameaçando ir garganta adentro, ao que ela cerrou um pouco os lábios e ele retrocedeu, mudando também a velocidade com que, sem descolar o rosto dele do dela, girava para um lado e para o outro a cabeça, e o beijo, que agora seguia num ritmo que parecia emular a câmera lenta de um filme, acelerou nela uma reação que lhe vinha de baixo a cima, como se seu mais baixo ventre fosse puxado para dentro da cavidade corporal por uma força de vácuo, ventosa, e ela aos poucos fosse inteira se invaginando mas também dilatando, latejando e, em úmida produção, antecipando algo que ali, na frente de todos, não poderia acontecer, não além do simulacro de então, as mãos dele pressionando os flancos dela, ela arqueando as costas enquanto fincava os dedos nos braços dele.

Passaram a festa inteira juntos, cantaram parabéns, olharam o mar, o céu estrelado, falaram sobre poesia etc. 

 Na cabeça da moça, muito dentro da cabeça da moça, através de pele, osso e meninges, um primeiro ponto se iluminou e, num pulso, propagou uma pequena corrente de lampejos que, neurotransmitida, atingiu um outro ponto que também se iluminou e atiçou um terceiro, que acordou um quarto, que ecoou em infinitos e simultâneos outros axônios e dendritos, pululando e cointegrando, em cinzentas e brancas massas, uma complexa e acesa malha em rede, que fez eclodir inundante de inúmeras membranas e por todo canto uma torrente de pequenos códigos flutuantes, dopaminas, endorfinas, adrenalinas e serotoninas que se combinaram numa quantidade muito exata e que, enquanto o rapaz se despedia dela prometendo voltar a a encontrar no dia seguinte e conferindo a ela, porque guiava seu corpo inteiro ora suprido de toda falta a uma muito específica direção que era a direção dele, um sentido, traduziam-se, entre entranhas, como amor. 

Pedro Jucá nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1989. Formado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, atua como Procurador do Estado do Paraná. Mas vive também entre a literatura — é pós-graduado em Escrita Criativa pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e já foi contemplado por premiações como Prêmio de Literatura Unifor, Prêmio Ideal Clube de
Literatura e Prêmio Off Flip de Literatura — e a psicanálise. Atualmente reside em Curitiba com seus três gatos: Willow, Hopper e Nimbus.

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