Drive

Já nos cruzáramos algumas vezes, nos elevadores, no saguão, na calçada: ele aguardando um táxi, distraído, enquanto eu esperava o manobrista trazer o carro alugado ­­— uma dessas escolhas banais à superfície, mas que em vez de se distinguir pela praticidade, pelo simples gosto, podem ser excruciantes, como a melhor forma de se locomover pelas cidades. Especialmente as que não são a nossa. Do café à janta, em dias, parecendo espontânea porém calculando incessantemente os riscos de cada gesto, corretora de seguro do meu próprio corpo. Entre os perigos de me perder sozinha e os de ter minha solidão mais íntima e mais à mostra — matéria palpável do que sou — violada por outrem, costumo guiar a mim mesma. Parco alívio, porque as escolhas são incertas, e o peso de fazê-las, essa coragem, chega a doer-me feito uma cólica.

Eu percebera, nesses breves encontros. Não era difícil, embora também não fosse uma evidência; é que sou boa nisso: gaydar que chama, né? Arrá. E a mais: no bar do hotel, então: baixo risco. Abri minha solidão à companhia dele, quando me sorriu perguntando Tudo bem? e se apresentou. Além do a mais: gato, e pra além desse além: algo como uma promessa de ser interessante. Sorri também, apresentei-me, equilibrando a voz entre o flerte (vai que), o pé atrás (vai que também) e uma espécie de acolhida fraterna. Alguém com quem conversar, apenas.

–– Posso me sentar com você pra um drinque? — a entonação desarmada, como quem sabe que a simplicidade franca jamais será clichê, e a recusa jamais será desonra (talvez eu devesse imprimir isto numa camiseta). Um drinque, ora. Se não, vida que segue. Não é não, e não é nada demais. Mas aceitei.

Falamos amenidades. Ambas a trabalho naquela capital tão quente e úmida feito um útero. Eu tomava uísque com gelo, ele pediu gin tônica. As duas capixabas: eu do norte, ele do sul. Partiria no dia seguinte. Deu-me algumas dicas de restaurantes, colecionados em visitas frequentes àquelas margens da Baía Guajará. Um drinque se tornou alguns: conversávamos cada vez mais livremente, quase cúmplices de algo que ainda não sabíamos o quê. O bar se esvaziou e restamos apenas nós e o barman em meio à decoração cafona emulando a floresta. Acho que eu terminava o quarto ou quinto uísque quando ele começou a contar sobre a noite anterior:

–– A semana foi puxada, mas ontem consegui voltar mais cedo aqui pro hotel. Aí entrei num aplicativo, sabe? Aqueles de pegação. Eu tenho um pras mulheres e um pros caras. Parece estereótipo, mas é empírico: com homens é muito mais fácil marcar um encontro de imediato.

–– Claro, Sherlock, pra vocês é bem menos arriscado encontrar um desconhecido no meio da noite. Não tem a ver com tesão. Pelo menos, não só. Não sempre.

Ele processou a espetada por um instante, enquanto eu calculava meus próximos movimentos — mezzo leoa, mezzo supercomputador — agora que o bonitão deixara claro que: talvez sim.

––  Tem razão. Todo modo, mesmo quando não rola na hora, é uma interação diferente. Tipo, é mais comum eles estarem propensos a um encontro cuja ideia é terminar na cama. Não tô julgando, não é uma crítica. Apenas era a minha vibe ontem: menos voz e mais tato. Foi uma semana foda.

Pedi outro uísque e levei a mão com que acenara ao barman até os cabelos: primeiro passando os dedos entre os fios e depois brincando de torcer alguns num cacho, só pra soltar em seguida — gesto deliberado de: estou a fim.

–– Comecei a conversar com um cara. Chamei pra beber aqui, mas ele disse que preferia dar uma volta, tava de carro. Beleza. Quando entrei no carro o sujeito era um delícia. Me animei, né? Começamos a rodar pela cidade, conversando. Aquele papinho: faz o quê da vida, de onde eu sou, por que tô aqui em Belém…

–– Deixa eu perguntar: tá certo que pra você é menos arriscado, mas tem umas histórias. A gente lê, ouve falar. Não rola um medo? Entrar assim no carro de um estranho?

–– Rola. Comigo nunca deu ruim, ainda bem. Algumas vezes apitou um sinal de alerta, eu caí fora, ou paguei pra ver e foi só alarme falso. Mas é bom ter umas táticas, minimizar os riscos. Deixar o cara ligado que se tentar alguma coisa, vai dar merda. Eu e um amigo de vez em quando avisamos o outro: Tô indo encontrar esse fulano, envia foto, se eu não der sinal em duas horas, me liga!

–– É uma boa tática.

–– É. Tem outras. Lá em casa, se chamo um cara que não conheço, até com mulher também, quando o porteiro interfona pra deixar subir eu sempre peço pra interfonar de novo na saída, confirmar que tá ok a pessoa ir embora. Minha irmã, quando pega táxi ou uber de noite, entra no carro e diz pro motorista esperar ela mandar uma mensagem antes de dar a partida, pra não enjoar com o movimento. Aí, malandramente, fala que a mensagem é pro irmão, avisando que tá a caminho. Às vezes até pergunta qual a placa, diz que é pra eu saber quando ela chegar. Ela sempre me avisa de verdade, mas eu às vezes faço esse teatro só pro maluco não ter ideia, ou adapto pra uns encontros, até zoando: Ó, enviei minha localização em tempo real pro meu irmão, pro caso de você me sequestrar. Funciona como quebra-gelo, mas se o cara não levar na esportiva, é mau sinal…

Cheio de manhas, ele. Eu anotava mentalmente as que não conhecia, feito uma aula de segurança pessoal em tempos modernos. Ou talvez algo menos hierarquizado: a sororidade possível naquele bar, ainda que mero arremedo (até porque, so-ro-ri-da-de: palavra teu: visalizando   passamos ta esperar ela mandar uma mensagem antes de dar a partida, pra nias seguidos? ou  passamos ão grande e já gasta pra caralho. Ou pra buceta. Enfim). São tempos inusitados, ainda mais depois do quinto ou sexto uísque. O álcool e a promessa de um ser interessante a se cumprir em carne e voz à minha frente faziam meu cérebro tecer aproximações entre nós duas. Resolvi provocar, mezzo a sério, mezzo descontraída com calabresa (calculada, claro): sorriso aberto, mas olhos duros de quem sabe os riscos em deixá-los dançar solto:

–– E eu deveria avisar alguém sobre estar com você neste bar?

Recostou-se na cadeira, alargando peito, ombros e o próprio sorriso transformado em riso, depois sorriso de novo.

–– Bom, eu diria que não. Mas sinta-se à vontade.

–– Acho que o barman é testemunha suficiente. Por enquanto.

Tornei a mexer nos cabelos. Ele retomou:

–– Todo modo, fiquei atento ao trajeto. Conheço um pouco a cidade. Eu não tinha nada de valor, só o celular, e o cara tava dirigindo pelas vias principais, sentido Centro. Não parecia perigoso. Coloquei a mão na coxa dele e falei que ele era um tesão.

Aquele tesão pronunciado alongando nitidamente o s: sinal. Mas as mãos quietas (admito: precisei piscar algumas vezes pra garantir que sua mão esquerda na minha coxa era apenas uísque e desejo), os olhos dançando ao redor, feito não tivessem ainda se dado conta: eu era o único par à vista. Como se aquela conversa pudesse tomar um rumo totalmente diferente caso aparecesse alguém mais interessante. Homens são umas bestas.

— Aí ele perguntou se eu topava ir no drive.

Seus olhos finalmente se fixaram em mim. Ainda dançando. Feito uma lap dance, talvez. Esperando uma reação, talvez. Por um instantésimo de temporalidade, me senti como se tivesse tropeçado:

— Drive?

— Pois é.

Riu. E com aquela palavra que ainda não fazia sentido, aqueles dentes, veio o gosto metálico do anzol. De quem se acreditava seduzindo, caí em mim: atraída pelo ziguezague como uma promessa a luzir na água, bruxuleante, até o gesto, o arpão, a mordida, atravessando-me os lábios. Putaquemepariu. Mulheres somos umas bestas também. Nós duas, eu e ele: bestas dançando a esmo.

Quando sua boca rearticulou-se em movimento, eu sabia o que vinha a seguir: a fisgada. Cacete. Puxou a linha devagar, reclinando-se na minha direção e abaixando a voz:

— Na hora achei que fosse o nome de um motel. Ele tinha dito que trabalhava com turismo, por isso não queria vir aqui. Virou algumas ruas e no fim de um muro comprido embicou num portão de alumínio. Parecia um motel normal, de fora, mas pega a visão: você entra, tem o caminho dos carros, e nos dois lados umas cortinas grossas, de lona, separando as vagas. Você corre a cortina pro lado e estaciona. Cada vaga é separada da outra por um muro, só que a céu aberto! Sem teto! Lá dentro tem o espaço pro carro e um telhadinho, uma meia água, saca? Tipo uma varanda, ao lado da vaga a descoberto. Doideira. A nossa varandinha tinha um sofá, uma mesa de concreto fixada no chão, e uma bancada separando essa área social de uma pia de cozinha e um banheiro.

Fez uma pausa, me olhando diretamente, pupilas congeladas num passo estático: mão que alcança e puxa.

— Um motel-estacionamento. Tipo um cinema drive-in, mas sem o cinema. Aí eu entendi o nome. Me deu um tesão louco. Era meio surreal, mas achei incrível, de tão inesperado.

É um lugar interessante, este: em que parecemos enxergar as engrenagens com mais clareza justamente por desejar que elas alcancem seu efeito. Sorri, antes mesmo que ele completasse:

–– E tô nesse tesão até agora…

Certa vez li que o cérebro feminino é mais eficiente em processar múltiplas tarefas que o masculino. Ao menos essa vantagem prática (se for verdade). Como: calcular, ao mesmo tempo: os riscos, o risco a mais de seis ou sete uísques, o ritmo, os passos da dança em meus próprios olhos, agora explícita, estendendo-se pra dançar junto, e a exata medida de alargamento do meu sorriso, quando todos esses cálculos disseram sim.


Thássio Ferreira nasceu em São Gonçalo e vivo no Rio de Janeiro. Poeta e ficcionista, autor dos livros (DES)NU(DO), Itinerários e agora (depois), de poesia. “Drive” foi publicado na coletânea de contos Nunca estivemos no Kansas (ed. Patuá). Escreve a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, na Revista Vício Velho, e tem contos e poemas em diversas. Venceu os prêmios Off-Flip e Cidade de Manaus 2020 (contos).

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Twitter: @thassiogf

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