Era uma terça-feira como outra qualquer.
Nora chegou na empresa, deixou sua mochila em cima da cadeira, pegou a caneca no armário e se dirigiu à cozinha em busca de um cafezinho. Foi aí que notou a mesa vazia no cubículo ao lado. Tampouco era a única: todos que passavam davam uma olhadela de relance, sem, contudo, deixarem transparecer qualquer interesse na cena ou emitirem qualquer julgamento. A mesa desocupada parecia irradiar uma tensão (afônica, mas palpável) que afetava a pressão atmosférica ao seu redor e se fazia registrar por quem quer que passasse por lá.
Na cozinha, os colegas discutiam os resultados da partida do último domingo, sem muita convicção. O micro-ondas apitava. Nora não sabia se o café estava muito amargo. Nenhuma menção sobre a mesa vazia, embora o seu significado fosse evidente: Bruno havia sido desenraizado.
A prática se consolidou na terceira década do século XXI, embora ninguém conseguisse se recordar, ao certo, como ela havia sido gestada e parida. Tudo o que se sabia, naquele começo de século, é que algo precisava mudar – e, de fato, mudanças vieram a galope.
A coisa começou a desandar já na primeira década do século XXI, quando uma miríade de contextos distópicos se anunciava na esquina. Pensou em crise sanitária? Check! Colapso econômico? Check! Instabilidade política? Check! E a ordem social, parte hipossuficiente dessa equação, engatinhava (lenta, mas decididamente) rumo a um K.O, enquanto levava golpes certeiros em seus órgãos vitais.
O primeiro a jogar a toalha foi o pulmão, com a chegada de um vírus respiratório que abarrotou os necrotérios, desmantelou os governos e infiltrou-se de tal forma no esqueleto da sociedade que somente alguns gatos pingados ousavam considerar o que ainda estava por vir.
Em pouco tempo, o sem-número de clamores sociais que tendem a competir por visibilidade em cenários de incerteza acabou confluindo, sem que ninguém se desse conta, para um apelo generalizado por previsibilidade, pura e simples (sem considerar, todavia, qual seria a contraprestação por essa commodity) e foi nesse momento que a cabeça resolveu acompanhar o pulmão e se retirou da batalha.
Em seguida, foi o estômago que levou um golpe fatal, com o colapso da economia globalizada e a crise na distribuição de alimentos, que acabou por substituir as organizações políticas que ainda restavam por sistemas tecnocratas geridos por conglomerados econômicos (os e-Govs), com a promessa de soluções desburocratizadas para as mazelas socias (dentre as quais, o dilema da previsibilidade).
Então vieram as FUSIs (“floating unities for social improvement”) e o coraçãosucumbiu de vez. Valendo-se de algoritmos desenvolvidos pelas grandes empresas de tecnologia e aprimorados ao longo de décadas, os e-Govs se tornaram capazes de antever, com uma precisão invejável, os comportamentos de todos aqueles que, algum dia, se valeram de aplicativos ou plataformas sociais para o seu entretenimento (contribuindo, dessa forma, para a construção do maior banco de dados comportamentais da história), de modo que, com base nos perfis traçados a partir desses algoritmos, os e-Govs criaram uma ferramenta de controle social que poderia oferecer previsibilidade – e, com ela (supostamente) as demais benfeitorias prometidas.
A perspectiva era promissora: como todo comportamento poderia ser previsto, a humanidade só seria surpreendida por ocorrências naturais, amputando-se, do conjunto das agruras da existência, ao menos aquelas de origem humana. “Menos uma coisa com o que se preocupar”, pensou-se.
Quando as FUSIs foram anunciadas, pouco se questionou acerca da sua dinâmica. O pitch, trazido pelos representantes dos e-Govs, era de que se tratavam de “unidades de melhoramento social” que flutuariam por todo o espaço aéreo e que teriam, como propósito, isolar aqueles cujo comportamento contrariasse as estimativas dos algoritmos – assegurando, assim, a imperturbabilidade da nova ordem social.
Em questão de meses, as FUSIs se tornaram onipresentes em todo o firmamento. Os dissidentes logo começaram a desaparecer (o que acabou sendo denominado, no linguajar popular, de “desenraizar”), sendo, todos os traços de sua existência prévia, apagados dos bancos de dados coletivos.
Quando a prática se tornou recorrente, atingindo entes queridos dos autointitulados “cidadãos de bem”, a bonança prometida cedeu lugar à apreensão geral de que qualquer mudança de gosto, temperamento ou hábito pudesse, de alguma forma, fugir às previsões dos algoritmos e ser interpretada como uma transgressão.
Passou a ser recorrente, nos divãs de psicólogos, a descrição de pesadelos em que os pacientes se imaginavam sendo sugados de suas camas diretamente para as FUSIs, no meio da noite, para nunca mais voltarem. Os filmes de terror reproduziam, com uma preferência alarmante, histórias de aliens e de abduções. Contemplar o céu deixou de ser uma atividade recreativa e se tornou uma fonte de tensão permanente.
Veio à tona, ninguém sabe de onde, a lenda urbana de que caso alguém olhasse para um lago (ou represa, ou piscina, que seja) em que uma FUSI estivesse refletida e repetisse três vezes uma informação inusitada sobre si, que o sujeito seria imediatamente sugado para os céus, sem ter tempo de pestanejar.
As pessoas passaram a temer, então, um novo corte de cabelo, um jargão inaudito ou um novo molho para salada. Experimentar se tornou um tabu. Uma obra inédita não era mais produzida, a não ser que repetisse, ipsis litteris, as fórmulas já conhecidas e repisadas cem vezes antes. Coletâneas literárias já consagradas passaram a ser reimpressas com voracidade e remakes foram produzidos um atrás do outro. As campanhas publicitárias se tornaram obsoletas, já que nenhum produto novo era incorporado às coleções. Qualquer inovação era acompanhada por um notável, ainda que justificado, mal-estar.
Nos cantos dos corredores, dizia-se que o Seu Arnaldo havia sido desenraizado por ter colocado azeitona em sua marmita, embora não tivesse demonstrado interesse pelo petisco antes. Que a Dona Elaine tinha inventado de fazer a macarronada de domingo com outra receita, depois de vinte anos com a mesma técnica, e que isso foi a sua perdição. Que a Mirna, roqueira de carteirinha, havia ouvido pagode (e cantado junto!) no carnaval e essa foi a última vez em que havia sido vista. Os relatos podiam variar no nome, sobrenome e CEP de seu protagonista, mas o seu desfecho era sempre o mesmo.
Não se sabia como era a vida dos desenraizados no interior das FUSIs. Todo o sistema que gerenciava as unidades flutuantes era automatizado e controlado por uma inteligência artificial centralizada, sem qualquer interferência humana. Guardas não eram necessários, já que, a três mil metros de altura (no mínimo), qualquer tentativa de fuga seria infrutífera – e invariavelmente letal.
Quando se parava para pensar, sequer se sabia se os desenraizados poderiam, de fato, planejar uma fuga, se estavam acordados ou em um sono induzido, se ficavam presos o tempo todo, se se comunicavam entre si, se tinham o que comer, se só respiravam ar rarefeito. Não se sabia, nem mesmo, se eles estavam realmente nas FUSIs ou se já haviam sido convertidos em fertilizante de bromélias. Tudo o que se sabia era que ninguém voltava de lá e que nenhuma pessoinha era vista caindo do céu. Nunca.
Para aqueles que permaneciam no chão, contudo, o cenário não era dos mais animadores. A possibilidade (sempre iminente) de ser sugado por uma FUSI trazia consigo a necessidade de um domínio sobre si que beirava o panóptico, abarcando todos os aspectos da vida (cada gesto, cada manifestação, cada escolha) e que asfixiava, em seu caminho, qualquer vir-a-ser que pudesse desabrochar nas frestas da existência.
Era necessário, ainda, aprender a conviver com o ocasional desaparecimento de alguém mais próximo. A Dona Firmina, por exemplo, levava todos os dias até o topo do mirante uma cesta com os biscoitos de nata que seu filho gostava, na esperança de que algum ‘mecanismo’ nas unidades flutuantes entendesse (de alguma forma) o seu gesto, sugasse os quitutes e os entregasse intactos. Os joelhos podiam até reclamar da iniciativa, mas o coração, ao menos, se aquietava um pouco.
O Seu Geraldo, por sua vez, com seus setenta e oito anos, resolveu se arriscar numa ascensão suicida ao K2 (em torno do qual flutuavam várias FUSIs), como uma tentativa de reencontrar a sua esposa desenraizada. Pegou as economias do casal, se despediu das plantas do terreiro e saiu pelo portão lateral uma última vez (alguns acreditavam que ele havia sido desenraizado, no final das contas).
Outras pessoas, menos propensas ao risco, mas igualmente enlutadas, optavam por simplesmente entregar os pontos, entrando em um estado no qual se limitavam a olhar desesperançosos para o céu pelo resto de seus dias, enquanto comiam gelatina no sanatório mais próximo.
Não era por menos que pessoa alguma se atrevesse a mencionar o desenraizamento do Bruno. Apesar do comedimento auto infligido, o anseio de rastrear o motivo do seu sumiço inundava a todos como um tsunami, já que qualquer um poderia, muito bem, ser o próximo. Será que ele assistiu ao jogo do time rival? Será que inverteu o lado que dormia na cama? Será que trocou o sabor do shake? Cada hipótese era absorvida, remoída e regurgitada uma dezena de vezes – e nunca descartada em definitivo.
Não que a base de dados comportamentais dos algoritmos fosse uma incógnita – pelo menos não no sentido estrito da palavra. Era possível solicitar, a qualquer momento, o envio dos dados que integravam a base particular de um indivíduo, por meio de um simples aplicativo desenvolvido para esse fim.
Os dados, todavia, eram de tal forma volumosos e interconectados que interpretá-los era o verdadeiro calcanhar de Aquiles. Em média, os dados poderiam ocupar facilmente, caso impressos em folhas A4, um cômodo de cinquenta metros quadrados por pessoa, o que impossibilitava, na prática, o seu entendimento. Junte-se a isso o fato de que cada nova solicitação era acompanhada por ‘termos de aceite’ progressivamente mais rebuscados e não é de se surpreender que até mesmo o mais resiliente se mostrasse desencorajado nesse empreendimento.
O jeito era ir levando as coisas, ainda que tropeçando, vez ou outra, na barra das calças.
Em uma realidade em que todos os prognósticos eram conhecidos, uma certeza se destacava: nada de novo apontaria no horizonte (pelo menos não tão cedo).
Nora terminou o café, lavou o seu caneco e se sentou na cadeira para começar o expediente. Respirou com intento enquanto amarrava o cabelo de uma forma ritualística e repetia para si mesma que se tratava de uma terça-feira como outra qualquer.
Sara Vinhal cresceu no interior (beeeem interior) de Minas Gerais e reside atualmente em Belo Horizonte, ainda cercada por verde. Advogada por formação, encontra, na literatura, alento contra a aridez do cotidiano.
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