Escondidinho

Perguntei-lhe delicadamente desde quando tinha relações com mulheres. Se era lésbica há muito tempo. Há quanto tempo assumida? Assumida não, não era isso o que eu queria saber. Há quanto tempo sapata. Há quanto tempo gosta de mulher. A primeira vez, ela disse, foi aos 50 anos. Olhei para o rosto dela; não devia ter mais de 55. Talvez tivesse 51. Cinquenta e alguns meses. Então, coisa recente, me interessei mais. Porque exalava segurança. E gritava aos quatro berros, como é bom, como é bom.

            Contou que foi exatamente no aniversário de 50 anos. Com 50 anos, resolveu sair sozinha. Mas tudo aconteceu um pouco antes, coisa de anos fermentando. Um tesão por uma vizinha, uma colega do pilates, perguntei. Ela parou e pensou um pouco. Até podia ser que tivesse tesão na professora de yoga. Mas como a kundalini, disse acentuando o ní, mexe com a energia sexual, não pensou que era tesão pela professora. A kunadiní abre os chakras, o chakra aqui, e apontou para o centro do corpo. O centro do corpo, que é a vulva. E desembestou a falar de tantra, mas eu não queria saber disso. Queria saber do pouco antes do aniversário, o porquê do aniversário.

            Então, ela disse que começou com a filha. A filha é bissexual, e veio contar com 20 e poucos anos que namorava uma garota. E foi uma perturbação, ela disse. Para mim, para o meu marido, mas para ele menos. Ele dizia que era só uma fase. Eu não acreditava em fase, então para mim foi profundo. Foi como uma traição. Eu sentia dores no peito, eu enchi a paciência dela. Brigávamos. Mas sempre brigamos, gostávamos de discutir, das intensidades. Às vezes, eu imaginava que estávamos dentro de um filme do Almodóvar, lágrimas, frases de efeito, o vermelho. Então, eu gritava com ela e dizia que não aceitaria, mesmo já aceitando, a saia longa vermelha. Daí, tudo acalmou, como acontece depois das tempestades. Essa é uma história de clichês, tempestades e calmarias. Acalmou, ficou quieto até demais, porque a filha largou a namorada. Aí, a questão sumiu da vida familiar, dos jantares, como uma foto de polaroid se desvanece até sobrar só os rastros dos corpos. Claro, escuro. Mas os rastros ficaram comigo, ela disse. Porque eu ficava pensando, como será que é. No fim, eu admirava a minha filha, apesar de ela não ser das mais resilientes. Eu a admirava porque ela se entocava em cavernas por dias a fio, e saía depois, respirando o ar fresco, como se nada tivesse acontecido. Mas o que tinha nessas cavernas? Isso ela não me contava, porque não confiava muito em mim. Compreensível. Como uma filha vai confiar numa mãe que a perturbou só por gostar de uma garota? Ela se mexeu na cadeira. Mas então, aquilo ficou.

            Ficou e se instalou. E foi alargando. E tomando conta primeiro dos meus sonhos. Depois dos devaneios. E entrou nos meus pensamentos na hora que eu fazia um sexo mediano com o meu marido. Ex-marido, desculpe, é recente. E, foi aí, próximo do meu aniversário de 50 anos, eu que, todo esse tempo, servia minha família, servia meu trabalho, e meu trabalho que é de funcionária pública de coisas burocráticas da justiça, então eu também servia o Estado, aquela deusa dos olhos vendados, sem nunca entender para o quê tudo servia direito, nem mesmo a minha família, porque ninguém nunca elogiou o meu escondidinho. E o meu escondidinho, receita de família, passada de geração a geração, era para ser especial. Mas ninguém nunca me pedia a receita. Eu nunca pude dizer assim: não posso te falar a receita, é segredo de família. Então, eu que vivia nessa roda modorrenta, apesar dos tremores que hora ou outra atazanam, decidi que iria ter um aniversário diferente. E sozinha. E iria num lugar que nunca fui antes.

            Imaginei que ela tinha ido a um lugar lésbico da idade dela – sei lá, um bar onde toca Ana Carolina. Mas não, ela foi num samba, o que é curioso. Porque ela conectou essa vontade de experimentar mulheres com um samba? Eu não entendi, mas acho que era uma roda de samba de mulheres, e tinha uma que tocava caixa, com as mãos em concha, as unhas limpas e curtas, os braços fortes. Sentada, uma perna de cada lado da caixa, os ombros um pouco curvados. Não tive coragem de perguntar se ela gostou dos peitos, das coxas ou da vulva aberta, mas imagino que eram as mãos. O movimento das mãos batendo na caixa. Pensando assim, impossível não se apaixonar. Uma mulher de cabelos quase raspados, me disse, brinco nas orelhas, sorrisão alvo, só parava de bater nas caixas para virar o copo de cerveja boca adentro. Garganta adentro. E ela e a caixa formavam uma coisa só, e quase se decepcionou pelo fato da mulher não ter a caixa no lugar das pernas. Daí, porque era o aniversário dela, e porque iria fazer o que quisesse, pediu que a mulher se sentasse na cama e ela ficou entre as pernas, sendo a caixa. E as mãos com unhas limpas e curtas, as mãos incansáveis, continuaram a batucar. Então, você se apaixonou, eu perguntei.

            Mais ou menos, ela disse. Não foi como paixão à primeira vista, não foi como nos filmes, não é um acaso. Eu fui para lá determinada. Determinada a ser outra no meu aniversário de 50 anos, e eu me arrumei bem bonita, e parecia que ainda tinha 40, porque eu me cuido, sempre me cuidei, sempre passei protetor solar. E sambo bem, modéstia à parte. Seria melhor se nos almoços de domingo, que eu passava desfiando frango e amassando batata para o escondidinho, eu oferecesse à minha família a minha dança. E eles se alimentariam desse suor, e talvez entrassem junto comigo na alegria. Mas não, é uma coisa maldita essa, o fato da gente ter de comer. A gente tem que comer. Todos os dias. Já pensou nisso? A gente não vive de beleza, de espetáculo. Inclusive, essas coisas dão muita fome depois. Então, eu sabia que a mulher que batucava na caixa era sapatona. Porque eu procurei antes no instagram, eu pesquisei bastante, eu tinha certeza. Eu não ia sem dar ponta no nó. Ponto, corrigiu. Ponto no nó.

            E, também, tem isso, eu disse que meu desejo ia alargando sem querer, tomando conta de mim, mas eu procurava manifestar. Aos poucos, eu procurava sim. Porque eu pensava na minha filha, e o porquê daquilo ter me perturbado. Ela viveu a juventude dela de outro jeito, não teve filhos nova, não casou. E daí, ela pode ser bissexual, namorar uma garota, contar para a família, criar um drama, largar a garota e continuar vivendo, sem arrastar crias. E era difícil entender o que é a bissexualidade, mas também aprendi com ela. Pareceu fácil quando ela contou que, agora, estava apaixonada por um homem. Um homem mais velho, inclusive. Fiquei com o coração desconfortável, passando vick toda hora no colo para ver se diminuía o aperto. Uma noite, com os olhos estatelados, o teto com a tinta cor-de-creme que eu escolhi, fixo, liso, lá no alto, eu falei em voz alta: preferia que ela tivesse continuado com a garota. Saiu como um suspiro. Meu marido se mexeu, ainda acordado, para o meu azar. Aliás, ex. Ele riu. Riu do meu desabafo, e disse: eu falei que era só uma fase. E a arrogância dele me irritou. O meu desabafo tinha aliviado um pouco o aperto, porque admitir sempre é bom, e admitir assim, em voz alta, para a gente mesmo, é sempre melhor, mais sincero. Não foi para minha filha, nem para ele, nem para a terapeuta. Foi para mim mesma. E destravou, clác, apesar de toda a ferrugem, abriu. Um espaço. Mas aí ele veio e disse que sempre teve razão. Não sei, é essa coisa do homem. Eles nunca acreditam de verdade que as mães têm uma conexão especial com os filhos, seres que nutrimos no nosso ventre nove meses, eles desprezam qualquer intuição maternal. Acho que têm inveja. Porque não gestam, não entram em trabalho de parto, não amamentam. E não sabem como é. E aí, ficam uma vida inteira tentando provar que não existe isso de intuição. Mais uma vez, eles têm a certeza, a razão. Mais uma vez, eles sabem mais do que nós.

            Sei, eu disse, mas não acha essa coisa da gestação não é uma ideia meio perigosa? Uma mãe que adota, por exemplo. Quase falei: uma mãe lésbica, por exemplo. Porque as mulheres que vivem uma vida heterossexual, nunca pensam de fato na vida sáfica. Dedos e línguas são o começo. De repente, você se apaixona e quer casar, ter filhos, muitos, envelhecer, ser uma avó sáfica, uma velhinha tricotando. Acontece com frequência. Uma casa num lugar tranquilo, talvez a gente se mude pro interior, uma casa com um quintal grande. Mas o que as pessoas vão pensar de vocês duas? Não sei, a gente dá um jeito. A gente sempre teve de dar um jeito.

 Você tem razão, ela disse, mas meu marido poderia ter respeitado minha preocupação, cogitar minhas razões, mesmo sem argumentos certeiros. Porque a história vai dizer que meu desconforto em relação a esse homem mais velho não foi em vão. Talvez não aconteça nada demais, me entende, nada muito grave além de casar e ter filhos. E sabe o pior, ela pediu a receita do escondidinho. Nunca se importou com o escondidinho antes, mas percebeu que para agradar um homem precisava ter uma receita de família na manga, para o homem ou para a sogra. E a sogra já é bem velha, escondidinho é perfeito, ela disse. Purê e frango desfiado, ela vai adorar. Sim, tentei disfarçar minha tristeza. Sim, escondidinho é perfeito. Eu esperei tanto para ela pedir a receita, e quando ouvi, veio com eco. Sabe? Mãe, me dá a receita do escondidinho-inho-inho. Ela distante, num galpão enorme, assombrado pelos fantasmas familiares. E a garota meio intransigente que eu criei quase sem querer, sem saber o que fazia, e que tinha me chocado porque namorava outra garota, porque se demitiu de um emprego CLT para seguir outra carreira, que fumava maconha com elegância – pinçando o cigarrinho –, foi parar lá, naquele oco. O galpão oco e assombrado. Um único altar no centro, exultando uma travessa de vidro de escondidinho – duas camadas, uma de frango, outra de purê –, nem tão gostoso assim. Gostosinho. Mas eu fingi alegria, porque esse pedido também marcou o começo da reconciliação. Então, eu tive que sorrir, perdoar a perturbação dela, assim como ela perdoou a minha. Uma camada em cima da outra.

            Ela bebeu um gole de cerveja, a espuma brilhou nos seus lábios, a língua a afagou. Então, contou o que aconteceu depois do aniversário de 50 anos. Ela e a sapata da caixa se deram tão bem que continuaram saindo. Num relacionamento aberto, ponderou, porque ela era uma típica malandra do samba. Perfeito para mim, imagina cair de novo na armadilha? Mas eu não podia continuar sem contar para a minha família. Na verdade, acho que era isso que eu ansiava mais. Depois da nossa primeira noite, aquela do samba, eu fui tomar café-da-manhã numa padaria, sozinha. Fiquei olhando o vidro da janela, o vidro mesmo, e não a rua, porque o que eu via ali era eu atravessando a soleira da minha casa, que é de vidro inteira, deixar cair minha bolsa no chão e declarar: “estou saindo com uma mulher. estou gostando de uma mulher. acabou, chega.” E essa fantasia se tornou um lugar seguro. Toda vez que eu revivia ela em delírio, sorria. Uma energia revigorante se espalhando pelo corpo. Kundaliní pura. Acho que demorei para contar também porque não queria estragar aquela cena tão perfeita, pela primeira vez eu mesmo ia ser a diretora da minha vida. Escolho a luz da manhã, a posição do meu marido e da minha filha, o cachorro com a orelha em pé, a música que ia tocar depois, meus próprios gestos, minha voz alta, decidida, firme. Minha roupa, vermelha, bem Almodóvar. Eu, mulher forte, intensa, bem Almodóvar. Depois, era zarpar para algum país que habla español, virar atriz ou musicista ou escritora ou prostituta de cabaré. Uma bela história de vida. Era isso – eu queria contar uma bela história de vida, de fazer chorar e rir, completa.

Mas qual a música que ia tocar na cena? Não deu tempo de decidir, meu marido desconfiou antes, bem antes de eu escolher a trilha sonora, forçou-me a uma conversa, “precisamos conversar/agora?/ agora, sim”, eu de pijama, ele achando que eu saía com outro homem, uma cena lamentável. Começou com ciúmes, uma cena ridícula, porque eu achava que, àquela altura da vida, ele nem sentia todo esse ciúmes. Uma vez mais, ele se adiantou e fez a cena que era do filme dele. Ele, protagonista corno – corno não, ferido, coitado, machucado, complexo. Eu, mulher ingrata, com um pijama velho – ela nem vale tudo isso, pensa o espectador. E, então, quando eu tive que admitir que era uma mulher, ele quase riu. Eu vi o sorriso entortando o bigode, um meio-sorriso irônico e sutil. E tudo acalmou. A cena virou comédia. E eu fiquei lá, ridícula, pijama velho, esperando a frase seguinte: é só uma fase. Mas eu não ia deixar barato ele desdenhar assim da minha história. Ele podia me achar ridícula de camisetão velho, furado, mas ela amava. Contei que ela me dizia: amo seus cabelos bagunçados de manhã. E não era nem mentira, porque ela era mesmo romântica. Com muitas. Mas ainda assim romântica, como uma música do Jorge Ben Jor. Era isso, acho que eu queria Jorge Ben Jor na minha cena de despedida. Eu, a cavaleira de São Jorge. Fui irritando ele, ele dizendo que tudo bem, podia esperar essa minha fase, fui falando das putarias que a gente fazia, igual naquele filme Closer, ele chegou perto e disse que tinha ficado duro, muito duro, estourando de tesão – há quanto tempo não ficava tão duro assim? Perguntou até se ela aceitava ménage. Mas eu não sou a bocuda lá, que agora eu esqueci o nome. Eu não queria excitar ele, eu queria magoar. E, de novo, ele tirou até isso de mim. Só que quem eu não queria magoar, se magoou. De quem eu esperava abraços e risos, veio o choro melodramático. Sua filha?, perguntei.

            Exatamente. Ela achou um absurdo. Acho que ela entendia, como eu quando foi com ela, que podia não ser só uma fase. Ela compreendia o que era andar na corda bamba, qualquer deslize, e a vontade de outra mulher nos braços. Ela me disse que eu era velha – velha para andar na corda bamba. Ela quem protegeu o pai da dor que ele mesmo não sentiu, antes da separação. Você vai cair, ela disse, e vai levar o pai junto lá para baixo. E ele é frágil, você sabe disso, uma das costelas quebradas já. Você vai destruir meu casamento. Vai chocar a minha sogra, velha, que usa dentadura e só come comida mole. E eu fiquei lá, vendo minha filha se transformar num monstro. Nenhuma piedade, nenhuma compaixão. Chumbo trocado dói, sim, doeu. Porque ela podia mudar a todo instante, mas eu não, eu tinha que ser o pilar, firme, o pilar daquele galpão oco, sem rosto, sem uma história para contar. Sem trilha sonora, só eco e metal rangendo. Eu tinha de ser para sempre a mãezinha. Junto do paizinho. O meu ato transformado num drama que eu não esperava, ter de lidar com a frustração da minha filha bissexual. Olhar no rosto dela e ver que ela não me via uma mulher, uma mulher completa. A redenção que eu esperava, a gente enfim se compreendendo, iguais, companheiras até, foi solapada pelo egoísmo dela. Quando ela disse que ia se juntar com o homem mais velho, talvez casar na praia, falando em relógio biológico, vontade de ter filhos, eu retruquei: então está tudo bem, Marina, o pilar agora é você. Eu fui, zarpei desse barco. Mas fui solitária, triste, doendo todas as juntas. Daí, eu decidi que precisava contar essa história, ter amigas lésbicas, quem sabe, uma amiga virar mais uma coisa. Porque a da caixa foi embora, como previsto. A coisa dura o que tem de durar.

            E eu fiquei olhando para ela, sem saber o que responder além do óbvio, e eu não queria ser uma personagem óbvia naquela cena. O pagode rolava solto no fundo, alguém trouxe outra cerveja, uma travessa de carne, o sangue da picanha pingando. Sapatas ecoando suas risadas exageradas. Ela desenrolou a canga colorida da cintura e foi dar um pulo na piscina. Um pulo gracioso, muito elegante. Algumas olharam para ela, pensando a melhor maneira de chegar naquela mulher tão segura de si, músculos torneados de pilates e yoga, praticante de tantra – praticante de tantra era o que tava escrito no seu perfil no aplicativo de relacionamentos. Eu, ali, meio deslocada, porque ela conseguiu dirigir sua própria cena e eu era apenas uma figurante. Nem nome eu tinha. Mas tudo bem, nada de roubar cenas. Minha participação se encerra aqui ou talvez a gente saia para tomar um café um dia, se eu tiver paciência para os papos de kundaliní. E ela dando braçadas na piscina, sorrindo contra o sol, e eu no mesmo lugar, juntando as pontas soltas, o não-dito, matutando a aura de mistério que a envolvia. Não se apaixonou pela mulher da caixa, buscava um motivo de emancipação. Emancipou-se dolorosamente, mas, sim, havia desejo, um desejo ainda subliminar, meio envergonhado de uma emancipação tardia, que o marido chamou de crise de meia-idade, depois que percebeu que o termo fase não ia surtir efeito. Mas faltava-lhe confessar, ainda, o crime. Era isso. Ela tinha a aura de fugitiva de um crime passional e justificável, óculos escuros, cabelos ao vento, precipício azul. Camadas transparecendo na travessa de vidro. Você ainda faz o escondidinho? Fazer eu faço, ela respondeu, mas que se foda a receita.


Mariana Vieira Gregorio publicou o livro de contos “Noturna” pela Editora Patuá em 2021. Formada em audiovisual pela ECA-USP, trabalha com pós-produção de som, mas também já roteirizou e deu oficinas. Paulista, nasceu em Campinas e vive em São Paulo. Contos em revistas virtuais, outros textos e contato podem ser encontrados em seu site.

Site: www.marianavg.com

Facebook: www.facebook.com/mariana.vieira.gregorio

Instagram: @noturnanoturna

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