Abajur

I

O ponto mais escuro da noite chegou

Deixa de ser besta, menino. E noite tem ponto mais escuro?

Tem sim, mãe. Você não sente?

Eita, noite é noite, é escura igual

Não é não. Toda vez que venho dormir contigo é porque ficou ainda mais escura

Ou seja, quase toda noite, né, seu moleque?

É que quase toda noite lembro de quando ele passava a mão na minha cabeça e apagava a luz do abajur

II

Ele dizia para deixar a timidez de lado

vá, pule do penhasco!

o mais jovem não ouvia

recolhia as botas limpas

ajeitava o enredo no centro da mesa

escorriam comprimidos pelos cantos da casa

o mantra engolia os ouvidos

sempre se costura em fiapos

sempre se queixa do destino

sempre se esquiva dos diálogos

ele dizia para cutucar as feridas

vá, cheire mais os riachos!

o mais jovem não ouvia

conferia a tranca do baú

alinhava o cabelo com o tempo

ajeitava a poeira embaixo da jaqueta

olhar o mesmo quadro, não!

é todo ceifado em besteiras

é todo regrado em tolices

é todo vedado em ruínas

caia fora daqui!

o mais jovem se foi

desde então desabafa aos soluços

grita com os vultos

nunca mais apagou a luz do abajur


Armando Martinelli é natural de São José dos Campos (SP), e reside, desde a infância, em Campinas (SP). É jornalista, mestre em divulgação científica e cultural, doutorando em educação pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Autor de Recital das reticências (2018), e A luz do Abismo (2022), ambos pela editora Urutau, têm poesias e contos publicados em algumas revistas e coletâneas digitais. 

Instagram: @armando_martinelli_nt

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