Rômulo. Distância: 1,5 Km. 20 reais e 50 certinho. Lancei logo um “tem troco?” no bate-papo. Rômulo está digitando. Rômulo está digitando. Rômulo está digitando. “Sinm^mm. Si. Sim!”. Pelo menos a corrida se paga. Toca pro Aleixo.
O endereço dá no estacionamento de um petshop de burguês safado, mas ao estacionar, é uma gordinha de cabelo cor de rosa e cheiro de chiclete que abre a porta. “Rômulo?”, pergunto. “Eu mesma”, ela responde, batendo a porta com força e esfregando o rabão no banco até chegar do outro lado. Depois, afunda a barra da minissaia tye dye entre as coxas brancas com a mão direita. Tem a seriedade de quem encara a Bocca della Verità, ela. Finjo ajustar o retrovisor. Vejo desde suas pupilas dilatadas até uma gota de suor descendo por sua canela até o cano do coturno verde de plástico. O mais estranho é ela estar com um casaco de peles feito de uma centena de coelhos correndo pelo banco de trás.
O cara da foto, o Rômulo, enfim entra. Sei que é ele porque usa o mesmo chapéu do avatar do aplicativo, só que com óculos escuros redondinhos, uma garrafa de água de dois litros pela metade numa mão e um saco de ração premium de 4 Kg para gatos castrados que se arruma sozinho entre o casal. Ele também se veste de forma muito incomum para a época e para a cidade: tem um casaco clássico sombrio e calças cinza-de-pardo. Abaixa e levanta o vidro do carro umas cinco vezes até encontrar a suposta altura ideal. “Valeu, valeu”, diz ao vidro. Drogaditos de merda.
Iniciar corrida. Eles ficam em silêncio, cada um olhando numa direção. Ela, com os olhos de cabocla alienígena; ele, com lentes intransponíveis na carranca de pirata afogado; e o saco de ração encarando a caixa de marcha. Uma espécie de trauma sexual prende o casal abismado. Foco no mapa, penso, e nas vozes da minha cabeça que me contam sobre a cidade dentro do fone de ouvido. Motoristas e central trazem revelações de toda a Manaus branca no sol de setembro: blitzes, vias que se afundam até o subsolo sem mais nem menos, motoqueiros estirados no asfalto em acidentes incríveis, postes deformados em contos morais sobre os perigos do trânsito, ou onde abaixar os vidros para garantir que traficantes não atirem no meu HB20 alugado. Já o trio do banco de trás, esse parece ter suas revelações particulares para alcançar a iluminação.
Bastam algumas ruas para o bairro de ricaços virar uma semi favela, a mesma frágil ilusão de todos os dias. O casal continua em silêncio, mas agora sinto, com o canto do olho, que ele estende a mão até a dela, que descansa em cima do saco. Este, por sua vez, faz um créc, um barulho que anuncia a reconciliação dos dedos. Agora ele está segurando as duas mãos dela nas suas. Ela está beijando as mãos dele. Estão olhando-se nos olhos de muito perto.
“Você gostou?”
“Do que, bruxinha?”
“Do cachorrinho lá do pet. Ele é da Disney!”
“O Walt Disney tinha um cachorrinho daqueles?”
“Não, mô. Aquele cachorrinho é o mesmo do desenho da Disney. A Dama e o Vagabundo, lembra?”
“Não. Odeio cachorros”.
“Era um daqueles. Bem fofuxinho, né? Que nem você. Qual o problema de cachorro, mô? Ele tava tão limpinho e gostoso.”
“Gostoso?”
“Sim. Com aquela cabecinha de bola de gude e cheiroso. Limposo! Ele tava limposo.”
“Se você tá dizendo…”
“Mas assim, por que você odeia cachorro?”
“Eles são servis.”
“Mesmo o cachorrinho do Walt Disney?”
“Walt Disney odiava gatos!”
“Sério?”
“Olha como são os gatos nos desenhos dele.”
“Que droga. E ele odiava judeus também.”
“Aí eu não sei.”
“É sim, eu li na internet. E a cabeça dele tá enterrada na atração dos Piratas do Caribe na Disneyland… ai!”
“Cuidado aí com o buraco, motora, a menina bateu a cabeça aqui. Machucou, bruxinha? ”
Pedi desculpas e engatei a quarta.
“Tudo bem, moço. Machucou não.”
“Sabe o que mais o Walt Disney odiava? Buracos.”
“E é?”
“Sim, é sério. Tem uma porrada de registro de reclamação dele na Prefeitura, sabia?”
“Sabia não.”
“Ele andou aqui pelo Morada do Sol tudinho. Tirou foto e fez um textão pro Facebook que bombou. O carinha lá chamou ele pra ser adm do Trânsito Manaus depois disso”.
“O Walt Disney odiava esses sertanejo de rádio também…”
“Sim, mas ele odiava mais esses bares de rock que só tocam uma música de cada banda. Ele falava assim, como é? ‘Só existe White Rabbit do Jefferson Airplane? Porra, e essa merda de Sweet Dreams na versão do Marylin Manson, ele só lançou esse single? Não aguento mais!’. Isso foi pouco antes de ele se matar.”
“O Walt Disney se suicidou?”
“É, você não sabia? Ele foi lá pra Ponte do Rio Negro num domingo e se jogou.”
“Que triste.”
“Pois é. Acharam o corpo dele uns quatro dias depois, todo comido de peixe, já lá pro Janauari. Por isso que só enterraram a cabeça dele.”
“O mais irônico é que ele adorava pescar praquelas bandas. Ele ia sempre no Pesque e Pague do Paraíso D’ângelo. A cunhada da minha tia foi casada com o dono e ela sempre topava com ele lá nos anos 1990. Ele pescou um peixe lá que entrou no Livro Guinness dos recordes, acho que foi em 1993.”
“Qual?”
“Qual o quê?”
“O peixe ele pescou?”
“Ah, amor, foi um tucunaré, eu acho. Nem lembro.”
“…”
“…”
“Desculpa.”
“O Walt Disney nunca pedia desculpas.”
“Não, desculpa mesmo por aquilo mais cedo. Eu prometo que vou melhorar.”
“Vamos só ficar bem, tá?”
“Tá”.
Agora eles estão a examinar as palmas das mãos um do outro como se fossem mapas de Paris ou do mundo. Como se estivessem à procura do metrô que os levasse juntos através dos caminhos subterrâneos, através das estações do desejo até ao terminal do amor, até às portas da cidade-luz. É um caso sem saída.
“É aqui o Mirage Park, moço. Chegamos.”
Eles saltam do HB20 e correm para o parquinho, mas não sem antes Rômulo me jogar uma nota de vinte com uma mão e puxar o saco de ração com a outra. Já a pequena arremata os cinquenta centavos do total da corrida. Lourenço, 5 estrelas. Sou eu. Sigo e o som de um forró estoura no paredão de um Gol Cara Chata rasgando a Recife num piscar de olhos. Corto pelo Eldorado e misturo o falatório da central no fone de ouvido à trilha de um barzinho da moda que já invade algo que lembra uma calçada. Passo devagar, admirando bundas que jamais tocarei. Um grupo de cadeirantes alucinados cheira pó numa das mesas do Restaurante Papagaio’s, alheios à ausência de pernas que só incomoda os demais. De olho no mapa da próxima corrida, lembro dos amigos do Walt Disney e penso em suas linhas de cabeça e linhas de coração, suas linhas de sorte e linhas de vida ilegíveis e misturadas no mons veneris da sua paixão.
SUSY FREITAS nasceu em Manaus, Amazonas. Tem três livros de poesia publicados – “Véu sem voz” (Bartlebee), “Alerta, selvagem” (Patuá; Prêmio Literário Cidade de Manaus) e “Carrego meus furos comigo” (Urutau) – além de livros no campo da crítica cinematográfica. É uma das editoras da Revista Torquato.