Eu fico de pé com a mão levantada, o braço estendido, o grito pela metade.
Eu fico muda e cega.
Eu fico.
A dor que sinto nos músculos é terrível. Não há poesia na luz elétrica gasta, na lâmpada de 60 watts pendurada no fio preto nua no centro do quarto. A falta de sombras calorosas e ternura humana é devastadora. Minha carne não tem mais capacidade de continuar essa ladainha de angústias.
O tapete vermelho cheio de madrugada fica aí, com sua poeira velha e antigos sumos humanos.
Saio.
Vejo meu reflexo nas rachaduras da rua, no meio do asfalto fissurado, nas pocinhas oleosas que se formam. Esses espelhos de água preta e espessa, como janelas para as profundezas da cidade. Como o olho que revela a alma das coisas, o oculto das superfícies. A profundidade das cavernas que existem sob os solos, e debaixo, ainda mais abaixo, o profundo vazio. A terra faminta, esquecida e desenganada enche sua face de podridão humana.
Eu sei que tenho sido vento norte em algumas vidas; na minha, tem havido um turbilhão de ventos vindos de todas as direções.
Dou alguns passos e paro novamente. Como escapar da ânsia de caminhos? Como não ficar louca?
Conviver sempre com essa solidão tão cortante. Roçando apenas com pequenos toques algumas pessoas, pequenas aproximações, pequenos compartilhamentos, pequenas vulnerabilidades. E depois a continuação de uma estrada ávida de depoises que nunca se esgotam. Sempre há algo mais para ser visto, ouvido, cheirado, caminhado, transitado. Sempre há algo mais além. Algo mais para viver, para escrever, para fotografar, para ver, conhecer, descobrir, sucumbir. Outras pessoas que ainda não foram provadas, saboreadas. Essa ânsia perpétua, como um jugo que carrego, algo que arde, que não se sacia com nada. Sempre há mais corpos, mais mentes, mais olhares para alcançar.
Angústia sempre. O gosto de cada pele é apenas o vazio que vai encher a próxima.
Sacia-se apenas de vez em quando enchendo ocos em outras angústias. Fazendo ninho em outras existências, a própria vida como o filme de alguém sendo projetado em loop em outro cérebro que por sua vez me devora, me anseia, também sem se esgotar nunca.
Porque são poucos com quem compartilho o ver, o olhar. São poucos os que andam pelo mundo como eu, com a pele recém colocada e como em carne viva. Para quem as cores signifiquem tanto, as das madrugadas ou entardeceres com horizontes despejados. Não são muitas as pessoas com quem eu posso sustentar esses olhares ou essas conversas sobre esses olhares. Para quem a dor das pequenas feiuras machuque tanto seus olhos. Para quem o ponto perdido na longa linha onde termina o mundo e o mar e a praia façam-no pular de júbilo e começar a cantar.
Quero ver essa criança que perdeu o horizonte dentro de uma torre de concreto com espelhos no teto. Quero sentir essa dor primeiro, a mais humana. Para que depois, quando as cores explodirem no peito, o reflexo invertido desse cinza abandonado, o exorcismo desse cinza abandonado, seja a rebelião desse cinza abandonado, o ponto de fuga fluorescente, o redemoinho de cromática anarquia.
E aí se percebe, como através de uma fenda fininha de uma porta permanentemente fechada, a revolta das crianças encerradas.
A revolta é essa voracidade de vida, de dor, de prazer. Tudo colocado junto como em um liquidificador frenético que nunca para e mistura sem critério dentro dos corpos. Agita-se.
Porque algo aconteceu. Algo se quebra neste mundo escuro. E é essa escuridão, essa aparente falta de luz, que torna os nossos olhos transparentes, o olhar feroz.
Há algo nessa nuvem densa que clareia, que define.
Algo primário, primeiro, basal. Essa irmandade fáctica.
Eu quero habitar esses sonhos húmidos para sempre. Que ninguém me tire esse oco onde se aninha a minha memória.
Eu me distancio dessa fonte. Não por decisão, me distancio como se fosse pelo devir das distâncias, só isso.
E a distância, que é espacial e temporal, vai engolindo as minhas letras, vai comendo a minha tinta, vai apagando meu peito.
Mas de repente, por nada, porque sim, como um redemoinho alado, volta a mim o incêndio. Volta com tanta fúria que me explode por dentro e o vitalismo que me infunde é incalculado e pungente. Como quando o sangue volta a circular depois de as pernas terem formigado e primeiro parece que não, que não vão mais responder, até que o organismo se acomoda e o sangue encontra sua torrente e essas pernas se levantam e correm, pulam, dançam. E aí, mais uma vez, a minha alma ressuscita aqui dentro deste corpo e desta pele, e se lembra que neste mundo tão cinza as cores não escaparam do meu olhar. E tudo brilha outra vez e eu flutuo sobre as coisas e sobre as ruas. E vejo as nuvens cinzentas que condensam a umidade e tudo fica altamente intenso, e este ser que eu sou pode vibrar ao ritmo de tudo isso, de toda essa vida e dessa fúria e girar como um dervixe arrebatado, até entrar na ação centrífuga da física, desintegrar meus átomos que não dormem nem hibernam mais e se fundir com a criação e com o todo. Ser a própria eletricidade. A própria energia. A potência.
Os caminhos se espalham na planície.
Uma multidão de delírios se abre sob minhas fontes. Nas encostas das áridas colinas do oeste, enredados entre os cardos, descem precipitados e desajeitados, mas sem freio possível. Nos mares do leste, nas florestas do sul, nas terras vermelhas do norte, nas selvas do norte mais longínquo.
Continuo indo. Minha estrutura se ergue firme como uma lança, com a mão levantada, o braço estendido, o grito a todo pulmão e a boca aberta em profunda gargalhada.
SOBRE A AUTORA
MARINA KLEIN nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1974. Inquieta, viajou pelo mundo e permaneceu por longos períodos em diferentes partes da América Latina, inclusive vivendo por alguns anos no Brasil. Nessas viagens, fez um tour por diferentes ofícios: escreveu reportagens, teve um programa de rádio, limpou casas, fez gorros de croché e até teve uma pequena fábrica de joias artesanais. É autora dos livros de contos De Fauces al Subsuelo e Danzando entre la Nada y la Furia, do romance Trashumantes e das plaquetes La vida secreta de quien come en la cocina, SEAMOS Libres que lo demás no importa nada, ¿Te gustó coger?, Georgina Orellano Puta Feminista e Donde los muros eran de niebla, lançados por Ediciones Frenéticos Danzantes. Além dessa editora, dirige também a revista Extrañas Noches e, durante a atual pandemia, tem desenvolvido um importante projeto de levar roupa e comida para moradores de rua de sua cidade natal. O relato foi traduzido pelo escritor e tradutor Maurício Colares.
SOBRE O TRADUTOR
MAURICIO COLARES nasceu em Manaus (AM). Morou em Buenos Aires de 2012 a 2019, onde publicou dois livros de narrativa e traduções de autores brasileiros ao espanhol, sendo a principal El infierno de Wall Street y otros poemas de Joaquim de Sousândrade, pela editora Corregidor. Desde o início de 2020, está de volta a Manaus.