Jantares

Alessandra Barcelar

Em Porto Príncipe, Colombo, Jakarta ou Recife servem as refeições do
amo, em troca do direito de comer o que cai da mesa; vendem frutas nos mercados de Bogotá e chicletes nos ônibus em São Paulo.” (Eduardo Galeano)


Quando o homem se aproximou da mesa com o copo de conhaque na mão, o velho estava quase terminando a costela com purê de batata e pimenta. Ele adorou a combinação das pimentas com a carne, mas gostou mais do sabor que deram ao purê.
Assim que terminou a refeição, limpou a barba e o bigode levemente untado com óleo, tomou um gole de vinho na boca, suspirou e começou a falar:
“Quando os Queiroz e Souza  chegaram à mesa para o jantar, Miguel já estava em seu posto. Miguel tinha apenas nove anos, mas parecia que há vinte sua mãe o havia dado àquela família porque não podia alimentá-lo.
Miguel trabalhava tanto quanto qualquer adulto para ganhar a vida e, por isso, ganhava seu lugar na sala de estar dos Queiroz e Souza na hora do jantar.
O trabalho era árduo e a vida também era difícil quando se tratava de conseguir algo para comer e por isso Miguel  era muito grato a eles.
Às vezes Eduardo, o caçula da família, oferecia a Miguel  o que restava de seu prato, mas seus pais o repreendiam duramente porque diziam que isso não era correto.
Em todo caso, nenhum dos trabalhadores que dormiam no curral podiam provar peru, carne, verduras e as mais saborosas sobremesas que caíam da mesa, sob a qual Miguel se postava todas as noites, esperando ansiosamente que algum dos membros da família fizesse um movimento incômodo, e, pela graça de Newton, a comida chegaria à suas mãos.
Às vezes Fausto, o cachorro, se infiltrava no local, discutindo pelo seu jantar, mas quando o dono da casa percebia, imediatamente ordenava aos outros criados que levassem o animal para o pátio.”
O velho ficou em silêncio. Enquanto o homem olhava para ele como quem olha a contracapa de um livro que acaba de ser fechado.
“Eu tenho que ir”, disse o velho.

“Você não quer ficar para dormir?”, Perguntou o homem.


“Não, obrigado – disse o velho – não se preocupe, amanhã estarei aqui na mesma hora.”


“Devo ajudá-lo?” Perguntou o homem

 “Tudo bem, eu posso sair sozinho”, respondeu o velho, saindo debaixo da mesa.


Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, atua na área de Economia da Saúde. Publicou contos em revistas literárias do Brasil, Portugal, Argentina e Alemanha. Participou em 2019 como jurada do prêmio VIP de Literatura (Categoria Contos); colaborou na coletânea Mitos Modernos I, que recebeu o prêmio Le Blanc de Literatura e Arte Sequencial, como melhor antologia de 2018. Atualmente é organizadora de uma coletânea de contos sobre realismo mágico

3 comentários

  1. Sandra Modesto disse:

    Ótimo texto.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigada, Sandra, acabei de ler sua poesia! Parabéns. 🌟

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