Charlatona

Rafael Mendes

Não sou charlatona. Ainda que não estivesse inteiramente segura das coisas que eu dizia. Precisava fazer a vida, comprar remédios pra diabetes, o escambau. Meus amigos se esfumaram quando acabaram os presentes, a grana pra comprar champanha, charuto cubano, roupa de seda. Gastava a valer. Sentia que as coisas não iriam se alterar, coisa de jovem besta. Era agrado pra um, lembrancinha pra outro, deixa que eu pago a conta aqui e ali. Não fiz pé de meia, não fiz meia, não fiz nada. Quando minha carreira acabou sobrou apenas o apartamento ali pelos lados da Pompéia. E só. Eu passava muito tempo de ressaca. Hoje quase não bebo.

Ninguém vive de memória de fama que nunca foi fama. Mas eu fiz algum sucesso. Tomei sova de crítico na penúltima página de jornal, recebi flores e cartões de fãs, viajei para o Rio de Janeiro várias vezes, fui em festa de casacudo, cuspi escargot em pano de prato de puro linho. Atuei em peças de teatro, fui figurante de novela das nove, fiz ponta em alguns filmes. Se não era a estrela, também não passava desapercebida. Um dos papéis mais marcantes que eu fiz foi de dona de pensão numa novela. Glória era o nome da personagem. O bordão pegou, me viam na rua e diziam de longe “Tome tento, Adamastor. O trem do progresso não para”. Faz tempo o suficiente pra criançada que me viu antes hoje me chamar de tia.

Minha carreira veio abaixo por causa das lágrimas. Bem, pela ausência delas. Os diretores perceberam que eu era incapaz de chorar. Pra ser sincera, nem eu tinha ideia do problema. Até então meus papeis haviam sido de mulheres expansivas, chefes de família, nada de coração frágil choramingando pelos cantos. A primeira vez que o problema se apresentou foi numa cena de novela onde eu interpretava a babá. O roteiro dizia que minha patroa havia perdido a guarda das crianças. Eu chegava, encontrava-a agarrada à uma garrafa de uísque, fumando feito o cão, e era informada da minha dispensa. Daí eu precisava chorar, desenrolar um lenga-lenga de amor aos pivetes, que não podia ficar desempregada, que não saberia viver sem aquelas crianças tão boas e quase minhas. Nem uma puta lágrima eu consegui verter. O diretor aliviou pro meu lado, disse pra eu fazer cara e voz de dor, que a coisa estava resolvida assim. Assim começou minha derrocada. A sorte foi cantando na direção contrária e mais vezes precisei chorar. Tentava pensar nas coisas mais horríveis: o holocausto e os trens cheios de gente indo morrer na câmara de gás, cachorros sendo espancados e cozidos vivos, aquelas fotos de vilas arrasadas no Vietnã. Depois li sobre algumas técnicas que outros atores usavam. Beber dois litros de água antes dos ensaios e piscar rapidamente até que as lágrimas saíssem facilmente. Nada. Chegava em casa, botava qualquer coisa no copo, agarrava o telefone pra falar com qualquer amigo e as lágrimas saíam sem que percebesse. Ora grossas e intermitentes, ora escorrendo como filete de água. Parece pouco, mas atriz deve saber chorar.

Os papéis foram rareando, os convites para eventos se tornando mais espaçados, menos presentes sendo dados, menos amigos atendendo minhas ligações. Só quando deixei de ser atriz é que percebi o quanto minha vida tinha passado em anos de bebedeira, quase sem memórias. Uma porção de álbuns de fotos, porém não me recordo de um terço dessas ocasiões. Tenho fotos ao lado do Pelé e do Tim Maia. Quem sabe eu tenha dormido com eles, ganhado algum presente, autógrafo, sei lá, qualquer coisa. Restaram apenas essas fotos. Então, tive que recorrer ao que minha família me deixou de herança.

Desde que minha carreira acabou sobre apenas isso: virar cartas, jogar búzios, ler mãos. Sempre fui mística, um tanto bruxa. Minha avó preparava feitiços, desamarrava maldições, dizia encantos pra derrubar verruga da pele, evitar que criança nascesse com rabo. Era aplicada, estudava a posição das estrelas, livros sobre ocultismo, recitava passagens de Aleister Crowley de cabeça. Vovó veio da Romênia e aprendeu com minha bisavó sobre magia. Praticava sua arte em francês, romeno e português, além de adicionar mandingas brasileiras ao que sua mãe fazia. Ainda era menina, mas me recordo dela passar meses fora de casa, fazendo turnê com circo, indo encontrar outras bruxas, se apresentando em associações e clubes secretos. A velha ralava à beça. Minha mãe cresceu crente que a avó era louca, eu não. Não acredita nas bobagens da sua avó, ela dizia. Mamãe era o oposto de minha avó. Se fez matemática, resolvia mistérios com fórmulas e números. Contudo, quando vovó morreu, manteve suas coisas no quartinho dos fundos, sabia que a parafernália era o que melhor guardaria a memória de sua mãe.

Ainda criança passei a ler os velhos livros de capa de couro, testava combinações de palavras que mal sabia pronunciar. Minha avó apoiava, dizia que eu também era bruxa, bastava aceitar minha vocação, aquilo corria por gerações na família. Por anos mantive os livros ao alcance das mãos, espiava qualquer coisa quando estava em casa sozinha. Às vezes, tomava vinho e lançava palavras na noite. Fiz poções, tentei ler borra de café, mãos de amigas desesperadas. Não reaveram seus maridos, pior, não conseguiram se livras daqueles tralhas. Vovó passou a vida inteira se virando com isso, por que eu não iria? Trabalhar como atriz me ensinou que existe todo tipo de mania no mundo, todo tipo de louco buscando sarna pra se coçar. No pior dos casos, ser atriz, pensei, poderia me auxiliar a manter face séria, de gerente de banco, ao ouvir histórias cabeludas. Faria meu melhor olhar misterioso, calculando bem a saída das palavras, criando um clima de mistério convincente pra diabo.

Tinha uma pequena sala na 25 de Março, quase na Ladeira Porto Geral. Escolhi a localização pensando na quantidade de desesperado por metro quadrado passando ali todo dia. Não faltaria clientela, disso tinha certeza. O prédio não era de boa reputação, volta e meia a polícia dava batida lá. Abria-se a porta, passava-se pela recepção, banheiro à direita, o ateliê — chamava o espaço de ateliê — mais ao fundo. A janela se abria pro mar de gente, no canto oposto um espelho redondo, um xale vermelho cobrindo a mesa larga, uma lâmpada fraca posicionada entre o paciente e eu, a bola de cristal fumegante ente nós. Trouxe muita coisa da vovó para o local, montei um cenário convincente, com livros antigos, ervas variadas, cristais e pedras. Eu não deixava de sorrir para meus clientes. Queria que percebessem os três dentes de ouro que carregava na boca. Eram falsos, mas bastante convincentes. Havia coletado como lembrança de uma gravação onde eu interpretava a herdeira de uma joalheria. Achei que aumentariam o caráter místico da cena.

Dizia na urgência de um disparo: você encontrará o amor. Ou a morte. Ou a fortuna. Tudo dependia da conversa inicial com o sujeito. Se chegava de olhos lavados de insônia, hálito de conhaque, unhas roídas. Ou se chegava de aliança recém adquirida, distintivo de polícia, ultrassom de gravidez. Acho que me pagavam, sobretudo, para serem ouvidos sem julgamento.

Uma das primeiras clientes, vou chamá-la aqui de Carla, amava cabelos, desde pequena quis ser cabelereira. Era mocinha esportista, gostava de praticar todo tipo de atividade que o professor sugerisse. Numa dessas quebrou o braço feio, passou por várias cirurgias e acabou perdendo a força do membro. A tesoura tremia na sua mão. Era mais fácil que esculpisse o crânio do que cortasse os cabelos de alguém. Confessou que roubava sacos de lixo de salões de beleza, recolhia cabelos, e montava perucas para seu manequim. Por fim, cortava seus cabelos. Para quebrar a maldição, disse que precisava rapar o próprio cabelo na lua crescente, pintar a unha do mindinho esquerdo de amarelo, comer gengibre pela manhã. Victor era assistente de treinador de boxe. Contava que seu chefe o colocava para ser saco de pancada de brucutus trinta quilos mais pesados que ele. Ficava assistindo tudo palitando os dentes e cuspindo no chão. Sonhava em sequestrar o patrão, pintar seu cabelo de rosa, soltá-lo nu na porta do ginásio. Para que isso acontecesse, recomendei que ele coasse café na meia de algum dos alunos e distribuísse para freiras. Contudo, havia os clientes duros. Suspeitavam das joias penduradas nas minhas mãos, do ambiente lúgubre do ateliê, alguns até perguntaram se não me conheciam de algum lugar. Para esses eu criava soluções simples e fantásticas. Tentava encaixá-las como bonecas russas que guardam diamantes. Para recuperar a esposa bastava simular um sequestro, para evitar que o filho comesse doces em demasia bastava colocar bacon no formigueiro pela manhã. Coisas assim. Inventivas.

Pedro não tinha trabalho para além de segurança do ateliê. Ficava à porta fazendo caça-palavras, rindo de vídeos recebidos no celular. Toda minha linhagem bruxa não evitou que eu acabasse com aquele estorvo. Sim, amava-o. Acontece que Pedro também era amaldiçoado. Incapaz de perceber sua preguiça e bondade exagerada, o desapreço ao labor, como era ludibriado nos carteados do Baixo Augusta. Os anos foram deixando-o, digamos, desatento. Nos conhecemos na época do teatro, quando ele ainda trabalhava com algum afinco e frequência. Vinha a reboque da minha saia, se esgueirando nas festas com malícia de raposa. Era rotineiro que ele voltasse para casa de barriga cheia e com mais dinheiro na carteira. Com sua fala pequena convencia colegas e desconhecidos a jogarem algum carteado, a disputarem cuspe em distância, números nos dados, tudo à vista. Entrávamos no táxi e ele já abria seu sorriso vadio, chamava todos de idiotas, beijava a medalhinha de Santa Isabel e dormia no meu colo.

Minha avó dizia que bruxas não podem utilizar seus poderes em causa própria. Morta na certa, ela sentenciava. Minha mãe, com toda sua reticência, repetia a frase como se mantra fosse. Não seria eu a primeira a testar. Acontece que o negócio não ia muito bem. Uma dureza do diabo, aluguel já ia atrasando o segundo mês, Seu Almir ameaçando nos colocar pra fora. Nossas últimas economias haviam sido gastas numa ideia desesperada de Pedro. Produzimos calendários com minha foto, telefone e e-mail, e fechamos parceria com duas revendedoras de botijões de gás. A ideia era entregar o calendário como brinde, porque pobre adora brinde, e alavancar a clientela. Apareceram uns pobretões dos fundões da zona sul, da Penha e do Tatuapé. A situação melhorou um pouco, mas nada que nos salvasse da falência eminente. Em poucas semanas estávamos de volta ao vermelho. Passávamos o dia inteiro olhando pela janela, vendo a 25 de Março se movimentando feito colmeia.

Foi então que Pedro teve outra ideia. Escuta, montamos uma apresentação ali na porta do Teatro Municipal. Coisa fina, com roteiro bem ajustado. A gente ventila o evento nas pocilgas mais cabeludas que eu conheço, boto o Ademar e o Bola pra ajudar. Vai juntar tudo quanto é puta, cobrador de ônibus, vendedor de loja e motoboy pra ver. Basicamente a classe mais propensa a pagar por mandingas. Ouvi sua ideia pensando outra vez como eu amava aquela filho da puta devoto de Santa Isabel.

Fiquei matutando o enredo por alguns dias. Pensei nas falas, no cenário, até nas personagens que poderia conjurar. Chegado o dia da apresentação eu estava excitada como nos velhos dias de tevê e apresentações no Teatro Bibi Ferreira. Ainda que eu nunca houvesse atuado dentro do Teatro Municipal, só de atuar em seu entorno era motivo de alegria. Coloquei minha mesa, o xale, a bola de cristal, uma caixa de música pra animar o ambiente e esperei. Foram se juntando curiosos, um outro ou outro sentando-se, contando suas cólicas, ouvindo resoluções, indo embora com menos dinheiro no bolso e mais calma no coração. Até que apareceu Pedro. Vestido de padre, rasgou uma história triste, de fazer avarento chorar. Já não acreditava em Deus, mas não sabia como abandonar o sacerdócio. Bebia o vinho da sacristia e dormia no confessionário. As pessoas olhavam espantadas, algumas riam, outras tiravam fotos, mais gente foi se reunindo. Saquei o arcanjo da morte, falei que Pedro precisava encerrar esse ciclo de sua vida, que aquela vida estava acabada. A roda da fortuna indicava que ela colheria aquilo que plantara. Por fim, ao sacar o louco, apontei que ele descobriria novos caminhos, bastava não perder a esperança. Aplausos, clientes requisitando agendamento, outras entrando na fila que crescia. Pedro se levantou como guindaste, caminhou até o cruzamento sem olhar para os lados. Foi atropelado em cheio por um carro. Morreu na hora.

Agora me pergunto: estive certa o tempo todo?


Rafael Mendes é escritor, tradutor e mestrando em Literatura Comparada na Trinity College Dublin. Seus poemas, contos e traduções já foram publicados em diversas revistas do Brasil, Europa e Estados Unidos. Dentre as participações mais recentes: “Arrival at Elsewhere” (Against the Grain, 2020), “Parem as máquinas” (Selo Off Flip, 2020) e “Writing Home: The New Irish Poets” (Dedalus Press, 2019).

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